S\u00f3 quem j\u00e1 correu uma maratona conhece as sensa\u00e7\u00f5es sentidas durante uma prova. O aumento da circula\u00e7\u00e3o sangu\u00ednea, a respira\u00e7\u00e3o acelerada, a adrenalina que parece percorrer todo o corpo, a fadiga muscular, as dores, as tens\u00f5es e ao mesmo tempo, o prazer, a sensa\u00e7\u00e3o de liberdade, a supera\u00e7\u00e3o.<\/p>\n
“S\u00e3o Silvestre”, o novo document\u00e1rio da cineasta e professora – da Academia Internacional de Cinema (AIC) – Lina Chamie<\/b><\/a>, que estreia no pr\u00f3ximo dia 27 nos cinemas<\/b>, constr\u00f3i de maneira sensorial a experi\u00eancia de correr a mais famosa corrida de rua do Brasil, realizada anualmente em S\u00e3o Paulo, no dia 31 de dezembro. \u201cO filme explora a natureza do cinema, os aspectos fundamentais do cinema, a rela\u00e7\u00e3o da imagem e do som. O filme n\u00e3o \u00e9 falado. N\u00e3o tem texto. N\u00e3o tem entrevista. \u00c9 um filme todo sentido. A ideia \u00e9 que o contato com a cidade se d\u00ea de forma direta, bem como o contato da pr\u00f3pria experi\u00eancia com a corrida. O filme traz a possibilidade de correr com o corredor. \u00c9 isso que \u00e9 explorado. A c\u00e2mera reproduz o olhar do corredor, o ponto de vista dele, olha de dentro pra fora. \u00c9 como se a gente tamb\u00e9m corresse com o corredor\u201d, revela Lina, em entrevista para a Comunica\u00e7\u00e3o da AIC.<\/strong><\/p>\n
Mais do que um recorte sobre a realidade, o filme traz o “corpo-a-corpo” entre o homem e a cidade. Correndo com os corredores, mas olhando para os lados, atenta \u00e0 paisagem concreta de S\u00e3o Paulo, a c\u00e2mera de \u201cS\u00e3o Silvestre\u201d consegue traduzir na base do som e da poesia muda das imagens, o que significa percorrer os 15 quil\u00f4metros que separam os homens e as mulheres do grande cl\u00edmax que \u00e9 a chegada.<\/p>\n
Ao todo s\u00e3o 17 c\u00e2meras distribu\u00eddas nos lugares mais improv\u00e1veis e inusitados, nas cabe\u00e7as, nos bra\u00e7os e pernas dos atletas, al\u00e9m de uma s\u00e9rie de traquitanas inventadas para deslizar sobre o tema com a m\u00e1xima delicadeza.<\/p>\n
O document\u00e1rio, lan\u00e7ado \u00e0s v\u00e9speras da 89\u00aa edi\u00e7\u00e3o da corrida, \u00e9 um filme distribu\u00eddo pela Pandora Filmes, produzido pela BossaNovaFilms e Girafa Filmes, e tem como coprodutora a Teleimage.\u00a0O filme teve sua estreia na Mostra Internacional de S\u00e3o Paulo e est\u00e1 em Havana, na 35\u00aa edi\u00e7\u00e3o do Festival Internacional Del Nuevo Cine Latinoamericano.<\/p>\n
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Conhe\u00e7a um pouco mais sobre o document\u00e1rio, a cineasta, a produ\u00e7\u00e3o, a montagem e, como n\u00f3s, aqui da AIC, fique louco de vontade de assistir ao filme. <\/b><\/p>\n
AIC – Como \u00e9 fazer um filme sensorial? Como \u00e9 poss\u00edvel passar as sensa\u00e7\u00f5es e emo\u00e7\u00f5es da corrida para a tela de cinema?<\/b><\/p>\n
Lina Chamie: <\/b>O que \u00e9 explorado do filme \u00e9 a pr\u00f3pria natureza do cinema, a ideia da imagem e do som. O filme traz a possibilidade de correr com o corredor. A c\u00e2mera reproduz o olhar do corredor, o ponto de vista dele. Esse \u00e9 o elemento forte no filme, a inten\u00e7\u00e3o de reproduzir a sensa\u00e7\u00e3o do corredor. Pra conseguir passar essa sensa\u00e7\u00e3o o som \u00e9 muito importante. O filme tem dois sons que s\u00e3o recorrentes e est\u00e3o, de certa forma, presentes durante todo o filme: os passos e as batidas card\u00edacas, que juntos foram um som quase m\u00e2ntrico no filme. Outra som importante \u00e9 a respira\u00e7\u00e3o humana. S\u00e3o todos sons muito b\u00e1sicos e ao mesmo tempo muito humanos e talvez at\u00e9 interiorizados, no sentido da representa\u00e7\u00e3o da sensa\u00e7\u00e3o do som. Esse \u00e9 o caminho que o filme abra\u00e7a. A proximidade, o olhar pr\u00f3ximo e as vezes at\u00e9 emocional de certos lugares da cidade. Os sons tamb\u00e9m significam lembran\u00e7as, trazem informa\u00e7\u00e3o sobre os lugares, quase como que no registro da identidade dos lugares. E tamb\u00e9m tem a m\u00fasica que em alguns momentos est\u00e1 ali.<\/p>\n
AIC –<\/b> Que rela\u00e7\u00e3o voc\u00ea tem com a Corrida de S\u00e3o Silvestre?<\/b><\/p>\n
L.C.:<\/b> A raz\u00e3o de eu ter feito o filme \u00e9 completamente afetiva e pessoal, embora a S\u00e3o Silvestre seja um evento que est\u00e1 no imagin\u00e1rio coletivo e que existe na nossa vida desde crian\u00e7a. Ela \u00e9 um \u00edcone mesmo para quem nunca correu nela. Mas eu morava ao lado do edif\u00edcio da Gazeta, na linha de chegada. Ou seja, eu estava no meio do furac\u00e3o. Viajo pouco, sempre passo o Ano Novo por aqui, sou superpaulistana. Quando a corrida passou para a tarde (o que \u00e9 uma pena, pois quando era \u00e0 meia-noite representava concretamente a passagem do ano novo), eu deixava a TV ligada, sem som, e ficava ouvindo os sons da corrida no lado de fora. Na virada de 2008 para 2009, resolvi descer para assistir tudo ao vivo. Fiquei umas duas horas vendo as pessoas chegarem, e \u00e9 sempre um momento muito emocionante, uma catarse. Ou a pessoa chega em estado de gra\u00e7a ou chega desgra\u00e7ada, ou chega chorando de emo\u00e7\u00e3o ou chorando de dor. \u00c9 um instante t\u00e3o cheio de humanidade, t\u00e3o belo. Fiquei muito comovida. Eu estava t\u00e3o perto. Foi a\u00ed que caiu a ficha cartesiana: ningu\u00e9m nunca tinha filmado a S\u00e3o Silvestre!<\/p>\n
AIC \u2013 Voc\u00ea usou 17 c\u00e2meras para registrar todo o evento, certo? Conte um pouco sobre isso… <\/b><\/p>\n
L.C.:<\/b> As 17 c\u00e2meras estavam espalhadas. Uma na largada, outra no centro de S\u00e3o Paulo, a terceira em cima do Palco da Virada, fazendo o enquadramento da largada, documentando a pr\u00f3pria pista e as pessoas se preparando na avenida Paulista. O resto das c\u00e2meras est\u00e1 correndo, de diferentes maneiras: uma, por exemplo, est\u00e1 no rosto do Fernando Alves Pinto. H\u00e1 tamb\u00e9m um operador em cima de um segway, aqueles ve\u00edculos de duas rodas, com uma steadicam. Ele controla o aparelho com o joelho, e assim a c\u00e2mera quase flutua no meio dos corredores. As outras s\u00e3o c\u00e2meras distribu\u00eddas em diversos pontos, at\u00e9 na canela de um corredor. Era como um estilha\u00e7ar de busca de imagens de dentro da corrida. E tudo em take \u00fanico!<\/p>\n
AIC \u2013 Como captar esse take \u00fanico, que acontece em apenas um dia?Ou seja, n\u00e3o existe a possibilidade de errar. Voc\u00ea sabia exatamente o que queria captar com cada uma das 17 c\u00e2meras? Como \u00e9 essa rela\u00e7\u00e3o de registrar um grande evento, sem saber ao certo o que vai acontecer? <\/b><\/p>\n
L.C.:<\/b> A imagem toda est\u00e1 captada como em um document\u00e1rio. Eu sabia que queria captar a sensa\u00e7\u00e3o do corredor. E que precisava construir isso depois, na montagem. Para isso tinha que me preparar, com uma log\u00edstica bem elaborada. Tudo foi filmado em 3 di\u00e1rias, contamos com uma mega produ\u00e7\u00e3o. Na primeira di\u00e1ria temos o treino do corredor e imagens da cidade, de um jeito totalmente diferente do dia da corrida. Na segunda di\u00e1ria o trajeto todo registrado em um dia normal da cidade, com caos e tr\u00e2nsito. E a terceira di\u00e1ria \u00e9 o nosso take \u00fanico, a corrida em si, registrada por 17 pontos de vista diferentes.<\/p>\n
AIC \u2013 E o Fernando? Ele \u00e9 ator mas n\u00e3o interpretou no filme, certo? Conte um pouco sobre essa rela\u00e7\u00e3o do Fernando, que \u00e9 um ator experiente, mas no document\u00e1rio \u00e9 ele mesmo, apenas correndo<\/b><\/p>\n
L.C.:<\/b> Fernando \u00e9 meu irm\u00e3o e eu n\u00e3o filmo sem ele. Um dia fomos ao cinema juntos e eu propus: \u201cVamos fazer o S. Silvestre juntos? Voc\u00ea corre e eu filmo\u201d. E ele, inadvertidamente, respondeu: \u201cVamos nessa!\u201d. Ele n\u00e3o tinha a menor ideia do que seria correr a S\u00e3o Silvestre. Ele treinou por seis meses e durante o ano ficamos testando uma c\u00e2mera que captaria a geografia do rosto de um corredor. Achava muito bom que fosse um ator, porque ele seria um peixe fora d\u2019\u00e1gua, sem o exerc\u00edcio da fic\u00e7\u00e3o. O Fernando n\u00e3o interpreta \u2013 ele vive uma situa\u00e7\u00e3o, enquanto a c\u00e2mera est\u00e1 l\u00e1 registrando esta profunda viv\u00eancia de um momento. O filme registra a chegada da elite, dos corredores vencedores, mas, o foco mesmo, o que eu queria contar \u00e9 a hist\u00f3ria dos caras comuns, n\u00e3o do atleta profissional. O Nando representa um pouco o corredor comum.<\/p>\n
AIC – E a chuva? No dia da corrida choveu o dia todo, n\u00e9? Como \u00e9 lidar com os intemperes do tempo no cinema? <\/b><\/p>\n
L.C.:<\/b> A chuva foi o acaso. No come\u00e7o apavorou um pouco, por conta das c\u00e2meras na chuva. Choveu durante a corrida toda e na chegada caiu uma grande tempestade. Tivemos que embrulhar todas as c\u00e2meras. Por outro lado, a chuva no cinema (de modo geral) \u00e9 um elemento m\u00e1gico e poderoso. A chuva traz for\u00e7a e dramaticidade para as cenas, o que \u00e9 uma tremenda sorte. Foi um elemento do acaso muito legal. O m\u00e1ximo que podemos fazer \u00e9 estar preparados, aceitar e tentar captar o que o acaso revela.<\/p>\n
AIC – Como foi a montagem de todo esse material? <\/b><\/p>\n
L.C.:<\/b> Ao contr\u00e1rio do que poderia parecer, n\u00e3o foi nada ca\u00f3tico, pois usamos o trajeto como mapa das c\u00e2meras alinhadas. De forma que o percurso, que \u00e9 o deus do corredor, tamb\u00e9m foi o nosso deus-guia na montagem. O som \u00e9 muito importante no filme. Ele \u00e9 absolutamente sonoro, s\u00f3 pode ser visto numa boa sala de cinema. O som \u00e9 parte da narrativa. Foi um processo criativo incr\u00edvel, pois \u00e9 o som que amarra o filme. O filme foi captado como um document\u00e1rio mas montado como uma fic\u00e7\u00e3o.<\/p>\n