Academia Internacional de Cinema (AIC)

Viviane Ferreira destaca a conexão entre o seu cinema e as raízes familiares

“É importante essa troca de ideias. Porque eu realmente acredito em um mundo de trocas de energias, de saberes, de conhecimento. A minha expectativa é sair daqui inspirada, reenergizada, retroalimentada”.

Foi assim que a cineasta e roteirista Viviane Ferreira deu início ao terceiro dia da Semana de Orientação da Academia Internacional de Cinema (AIC). 

 O evento que abre o ano letivo da AIC começou no último dia 17 com a presença do ator Antonio Saboia e deu sequência, no dia 18, com a participação da também cineasta Sabrina Fidalgo. No dia 20, o encerramento é com o diretor de fotografia do filme “Ainda Estou Aqui”, Adrian Teijido. 

Para Viviane, é impossível falar do seu processo criativo sem compartilhar detalhes da sua origem. “Eu nasci em Salvador, no Coqueiro Grande, bairro onde eu digo há 20 anos, desde que me mudei para São Paulo, que é um paraíso”. A característica de onde está suas raízes familiares não é à toa. “Além de ser uma comunidade quilombola, na qual habitaram as minhas famílias materna e paterna, o Coqueiro é um daqueles oásis dentro de uma cidade grande que compartilha um tanto de cotidiano rural”, explica. O bairro fica entre o bairro de Cajazeiras e a Estrada Velha do Aeroporto Internacional de Salvador, hoje chamada de Avenida Aliomar Baleeiro. 

 E foi lá onde ela começou a se conectar consigo mesmo e com as suas criações. “É um lugar que alicerça quem eu sou e por quais lentes eu enxergo e sinto o mundo”. 

 Sua relação com Coqueiro Grande também serviu de referência para o que intitula de “estrutura da encruzilhada”. O que, nas suas palavras, significa a forma como ela própria narra audiovisualmente as suas histórias. 

 

A Estrutura da Encruzilhada 

 A linguagem é dividida em três camadas e reflete a forma como Viviane lança o olhar para os seus personagens. A primeira está no campo do racional, do teleológico, do que a imagem traz para o espectador. A segunda bebe na fonte do semi-teleológico, que é quando a pessoa vê o elemento, não o enxerga exatamente, mas entende que está tudo bem não saber. A terceira e última é a da ‘feitiçaria’, quando definitivamente não há interesse em explicar a cena, mas sim trazer para o público as sensações do que está sendo reproduzido. “Com a camada da feitiçaria, eu tiro das minhas costas a necessidade de racionalizar e explicar tudo o que está no meu filme”, conclui. 

 Essa percepção semiótica traz um apontamento crítico ao mundo de hoje. “O que realmente me interessa é fazer sentir o tanto que o tempo acelerado do capital tem tirado de nós e das nossas gerações o entendimento de si próprios”.   

 No evento, Viviane também revelou ter uma relação de amor e ódio com os festivais de cinema. “Eu adoro os festivais para ver os filmes de colegas e conhecer novas pessoas, mas eu odeio a existência de premiação. Porque acho que ela rouba uma pré-disposição de conexão com o outro. E também acho que a gente gasta muito na tensão de que precisamos fazer um filme genial a ponto de um júri entregar uma estatueta de metal”. Mas é enfática ao celebrar as vitórias que o filme “Ainda Estou Aqui”, protagonizado por Fernanda Torres, tem colecionado no Brasil e no mundo afora. “Essa atmosfera de final de Copa do Mundo é muito bonita, e é muito menos sobre ostentar a quantidade de prêmios, mas sim sobre como o filme tem conseguido se conectar com as pessoas”. 

 

Um Dia Com Jerusa 

 Antes da palestra, foi exibido o filme “Um dia com Jerusa”, dirigido pela Viviane. A obra é de 2018, mas a ideia foi gestada muitos anos antes quando a própria diretora trabalhava com pesquisas de mercado pelos bairros de São Paulo. No trânsito, dentro do ônibus, ela testemunhou uma senhora chorar e se emudecer ao perceber que ninguém que ocupava o transporte público estava apto a ajudá-la, incluindo a própria Viviane. “Digo que o filme nasceu de uma frustração pessoal, de não ajudar uma pessoa que chorou e emudeceu por medo de me incomodar. Depois do que aconteceu, não dormi à noite e corri para escrever o que eu tinha passado em um papel, como forma de desabafo”. E foi deste desabafo que, sob insistência da sócia da sua produtora à época, nasceu o roteiro do filme.   

 A produção também lhe rendeu alguns perrengues. Dois deles, em especial, foram um roubo dentro do set de filmagem, que fez a equipe perder uma cena muito desejada por Viviane e a chuva artificial que o seu irmão, e também sócio, criou usando uma mangueira no lugar de equipamentos sofisticados. 

 

Inteligência Artificial e Políticas Públicas 

 Ao longo da conversa, Viviane foi perguntada sobre a interferência da inteligência artificial dentro do mercado audiovisual. Ao que ela respondeu com “duas identidades: uma de advogada e outra de artista”. A primeira é de defesa da regulamentação da tecnologia para que seja possível manter os direitos preservados dos autores, e a segunda, de forma direta, diz não ter medo algum da IA. “Me instiga tentar entender o funcionamento da IA, eu não tenho nenhum tipo de fobia. Até mesmo porque o mercado muda e se transforma todos os dias. Quero ser amiga dessa tecnologia, mas, claro, desde que haja regulação”, pondera. 

 Como criadora e defensora das políticas públicas do setor, Viviane relembra que sem elas seu filme não existiria, além de outros que foram importantes para a cena cinematográfica brasileira recente. “Um Dia com Jerusa nasceu a partir de uma política pública afirmativa da Secretaria do Audiovisual (SAV), da Ancine, na mesma época em que Marte Um, do Gabriel Martins, e Cabeça de Nêgo, de Déo Cardoso, também foram contemplados. É inegável que foram filmes que projetaram as nossas carreiras. Está aí a importância de ações como essa”. 

 No final da apresentação, a cineasta apontou dois desafios enfrentados diariamente pelo setor: a regulamentação do streaming, por defender que os direitos patrimonialistas da obra fiquem com o autor brasileiro e não com a plataforma estrangeira, e o enfrentamento à ‘pejotização’ do audiovisual. “Se você não está em um set de filmagem, não há nenhum direito que te dê seguridade”. E completa: “Eu desejo que as pessoas enfrentem esses problemas com a mesma energia que torcem para o cinema brasileiro no Oscar”.   

 Viviane ainda deixou uma dica final para os convidados: “Siga acreditando na sua própria criatividade e intuição. A cena independente não tem uma receita de bolo, e isso exige energia para se conectar com pessoas comprometidas com as histórias que vocês estão dispostos a contar e a ser critivo no garimpo de oportunidades”. 

 Sobre sonhos e desejos, até porque a conversa começou em clima de retrospectiva, a cineasta compartilhou a sua utopia: “que todas as pessoas que estão nessa sala consigam contribuir para que a gente tenha um audiovisual cada vez mais potente e pujante”. 

Texto: Guilherme Mariano
Foto: Raissà Nashla

 

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