Por Katia Kreutz
Curta-metragem da aluna da Academia Internacional de Cinema (AIC), Anabela Roque, acompanha os caminhos de um músico autodidata da periferia carioca
Baixada fluminense, subúrbio de Rio de Janeiro. Para poder tocar piano, o músico amador Maurício Maia empreende uma jornada até ao centro da cidade, mapeando instrumentos abertos ao público. Seus olhos brilham a cada piano encontrado, especialmente aqueles que estão afinados e prontos para serem tocados. Autodidata, ele acredita que a música irá guiar seu futuro.
“Eu acho que é possível conseguir um piano. Não é uma coisa barata, mas também não é impossível”, observa o artista. Em seu caminho da periferia até o centro, que ele considera uma verdadeira viagem, Maurício desafia as desigualdades de um mundo sem muitas oportunidades. Seu percurso mostra a realidade e o esforço de quem deseja viver da arte, mas não nasceu no “lado certo” da cidade.
O curta-metragem documental Piano Forte, realizado por um grupo de estudantes do FilmWorks da Academia Internacional de Cinema do Rio de Janeiro, com direção de Anabela Roque, propõe uma reflexão sobre o acesso à cultura e a determinação necessária a um artista. “Toda vez que vejo um piano, eu acho que não posso tocar. Eu sempre tenho essa sensação de que não está aberto”, descreve o músico, que é autor de algumas das composições usadas no filme.
Como tudo começou
A diretora conta que a ideia inicial partiu de uma pesquisa sobre as relações que se estabelecem à volta de um piano aberto a qualquer pessoa, em um espaço público. O plano era falar sobre um instrumento específico que se encontrava na Caixa Cultural, no centro do Rio de Janeiro, explorando seu papel como aglutinador de “personagens” e gerador de laços afetivos, na troca de vivências das mais diversas pessoas através da música.
“A intenção era, sobretudo, de mostrar um exemplo de acessibilidade à cultura em um momento no qual, politicamente, restringem-se oportunidades”, explica Anabela. No entanto, o piano em questão foi desativado, ainda na fase de pesquisa do filme. “Foi uma prova de como o acesso a um instrumento, até então aberto a todos, pode ser simplesmente vetado, de um dia para outro”, completa.
O foco da pesquisa então mudou, passando a abordar o tema sob a perspectiva dos usuários do piano, já que Anabela havia conversado com algumas das pessoas que tocavam o instrumento naquele centro cultural. Um desses músicos amadores era Maurício Maia, cuja história impressionou a cineasta desde o primeiro momento. Jovem negro da periferia, ele sonhava em aprimorar suas técnicas, compor suas músicas e direcionar seu trabalho para a dança.
Cinema de “guerrilha”
A jornada de resistência do músico no espaço urbano acabou refletindo o cinema buscado por Anabela. “Produzimos o curta num esquema de ‘guerrilha’, como são quase todos os projetos acadêmicos”, conta. O desafio adicional, segundo a cineasta, foi assumir um deslocamento da área de conforto da equipe, composta por estudantes de certo modo privilegiados, para entrar no trajeto proposto pelo filme – o de um artista em sua busca por oportunidades, cruzando vários territórios de uma cidade em conflito.
O grupo enfrentou gravações em lugares nos quais a captação de imagens não foi autorizada e a falta de segurança era latente. “Como o cinema é uma arte coletiva, um dos grandes desafios foi encontrar uma equipe interessada e responsável, que fizesse o melhor pelo projeto”, acrescenta a diretora. Os caminhos que levaram a essa dinâmica foram repletos de dificuldades, mas também de aprendizados. “O mais marcante foi ver que o esforço para fazer um trabalho minimamente consistente resultou em um filme capaz de emocionar o público.”
A carreira de Piano Forte nos festivais tem sido extremamente bem-sucedida, possibilitando que o curta-metragem chegue a vários lugares que a própria equipe nunca teve a chance de conhecer. “É muito interessante essa questão de ver o filme por aí, ganhando vida própria. Isso é a melhor recompensa”, conclui a cineasta.
Sobre a diretora
Anabela Roque nasceu em Portugal, residiu vários anos na Espanha e vive no Rio de Janeiro desde 2014. Formada em Jornalismo, trabalhou como programadora de canais para TV paga, tendo se especializado em produção audiovisual no Instituto RTVE – Televisão Pública Espanhola. Atualmente, finaliza o Curso Técnico em Direção Cinematográfica da Academia Internacional de Cinema, no Rio de Janeiro.
Essa portuguesa de coração carioca sempre viu no cinema uma forma de refletir sobre o mundo. Depois de trabalhar durante uma década no mercado da televisão, ela buscava novas maneiras de expressar suas ideias. Desejava realizar filmes que se propusessem a descobrir, desconstruir, desenvolver pensamentos críticos e livres de preconceitos. Nesse sentido, Anabela acredita no papel social do cinema documental, trazendo à tona temas pertinentes e que não interessam aos grandes veículos de mídia, que tendem a ignorar as culturas periféricas. “É muito estimulante ver que, por meio de documentários independentes, entram em pauta histórias, problemas e experiências que dizem respeito a todos”, afirma a estudante.
No final deste ano, Anabela conclui o FilmWorks e pretende seguir experimentando linguagens, buscando oportunidades no cinema brasileiro. Seus maiores interesses são em trabalhar como assistente de direção e na área de desenvolvimento de projetos. Como trabalho de conclusão do curso, ela está realizando um novo documentário, já em fase de pós-produção, sobre a situação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), instituição que é alvo da política de desmonte da educação pública no Brasil. Trata-se de mais uma história de resistência – um denominador comum em seus dois trabalhos como diretora.
Festivais e premiações
O ingresso em festivais abriu uma série de oportunidades para Piano Forte. De acordo com a cineasta, o caminho percorrido pelo filme é animador e, de certa forma, imprevisto. Seu desejo é de que o sucesso do curta possa beneficiar a toda a equipe, inclusive ao músico Maurício Maia.
O filme estreou no Rio de Janeiro, em março de 2017. No exterior, sua estreia foi nos Estados Unidos, em abril de 2017. Nos primeiros dias de novembro, será exibido no emblemático Cinema Odeon, como parte do Panorama Carioca do Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro. Em dezembro, terá sua primeira exibição na Itália. Confira a lista completa de festivais:
- 1º Sonic Scene, Music Film Festival – Trani, Itália, de 15 a 17 de dezembro de 2017.
- Mostra Cinema da Gema, Festival Visões Periféricas – Rio de Janeiro/RJ, de 28 de novembro a 3 de dezembro de 2017.
- Panorama Carioca, 27ª edição do Festival Internacional de Curtas do Rio de Janeiro – Curta Cinema – Rio de Janeiro/RJ, de 1 a 8 de novembro de 2017.
- Mostra Paralela, 1º Metrô – Festival do Cinema Universitário Brasileiro – Curitiba/PR, de 11 a 15 de outubro de 2017.
- 6ª Mostra Corsária do 24º Festival de Cinema de Vitória – Vitória/ES, de 11 a 16 de setembro de 2017. Prêmio de Melhor Filme da Mostra Corsária, que busca evidenciar as influências do diretor Carlos Reichenbach na nova geração de cineastas brasileiros.
- Programa CURTA UM SOM do 9º IN-EDIT BRASIL, Festival Internacional do Documentário Musical – São Paulo/SP, de 14 a 25 de junho de 2017.
- 8º Filmworks Film Festival, da Academia Internacional de Cinema – Rio de Janeiro/RJ, de 5 e 6 de junho de 2017. Prêmio de Melhor Roteiro, pela proposição de um novo trânsito urbano través de um remapeamento poético da cidade.
- Encerramento do III Festival Mate com Angu de Cinema Popular – Duque de Caixas/RJ, 31 de maio de 2017.
- Seleção Oficial, 26º Festival Internacional de Arizona – Tucson, Estados Unidos, 27 de abril de 2017.
- Mostra Competitiva Baixada, IGUACINE – 5º Festival de Cinema da Cidade de Nova Iguaçu – Nova Iguaçu/RJ, 26 de março de 2017. Menção Honrosa do Júri, pela originalidade com que aborda a questão do trânsito entre territórios, valorizando uma figura representativa para cena cultural da Baixada Fluminense.