O que é Dramaturgia?
“Drama é a vida sem as partes chatas”, dizia Alfred Hitchcock. Soa dramático? Talvez porque seja comum associarmos a palavra a algo intenso e emocionante. Na Grécia antiga, uma peça dramática era simplesmente a encenação de um texto, uma espécie de imitação da vida real. O termo “dramaturgia”, em grego, significa “escrever drama”. Já a palavra “drama”, propriamente dita, quer dizer “ação”.
Ao longo dos anos, o conceito de dramaturgia ganhou novos significados e passou a se aplicar a qualquer uso da composição dramática e da representação dos principais elementos do drama, seja nos palcos do teatro ou – hoje mais do que nunca – nas telas da TV e do cinema.
Um Pouco de História – de Aristóteles a Técnica do Drama
Tudo começou com uma obra pioneira na teoria dramática: a “Poética”, de Aristóteles, lá por volta de 335 a.C. Analisando as tragédias teatrais, o filósofo grego estabeleceu relações entre personagem, ação e diálogo, dando exemplos do que seriam boas narrativas e examinando as reações provocadas pelas histórias na plateia.
Muitas dessas “regras” narrativas são referidas hoje como “drama aristotélico”, e incluem conceitos como o da anagnórise (quando um personagem descobre informações essenciais, até então desconhecidas, sobre si mesmo ou sobre outra pessoa relevante na história) e o da catarse (momento que ocorre através de uma grande descarga de sentimentos e emoções). Foi Aristóteles também quem dividiu as peças teatrais em narrativas com início, meio e fim, sempre com algum conflito e uma resolução.
Foi somente no século 18 que o termo “dramaturgia” passou a ser usado, oficialmente, para descrever uma teoria de estrutura narrativa. O autor e teórico Gotthold Ephraim Lessing, do Teatro de Hamburgo, estabeleceu a fundação do que seria a dramaturgia moderna, tendo em vista as performances dos atores e a manipulação da narrativa para refletir o cenário sociocultural e as referências do mundo no qual ela se encontra. Para ele, o dramaturgo era uma espécie de “juiz dramático”, responsável por entender as motivações dos personagens e por envolver o público na história sendo contada.
A partir da obra de Lessing, outros importantes autores, como Goethe, Schelling, Thornton Wilder, Arthur Miller e Tennessee Williams, começaram a refletir sobre o ofício da dramaturgia. Já no século 19, o escritor alemão Gustav Freytag fez um resumo dessas reflexões no livro “A técnica do drama”, estabelecendo também um modelo de estrutura narrativa em cinco atos (exposição/introdução, ação crescente, clímax, ação em queda e resolução/denouement). As ideias de Freytag serviram como base para o que viriam a ser os manuais de roteiro dos dias de hoje.
Dos Palcos para as Telas
Embora o conceito de estrutura dramática ainda seja muito associado ao teatro, ele passou a se popularizar também na televisão e no cinema. Isso porque as bases narrativas são semelhantes, já que as diferentes linguagens compartilham dos mesmos princípios estruturais e têm como principal objetivo contar histórias.
Conforme as artes audiovisuais foram se desenvolvendo, o conceito de narrativa em cinco atos foi sendo adaptado para as telas e aplicado – com os devidos ajustes – em plots de filmes, seriados e novelas. Alguns críticos passaram a considerar essas adaptações problemáticas, já que a teoria original de Freytag se baseava nas tragédias gregas e peças shakespearianas.
No entanto, é cada vez mais frequente, em histórias contemporâneas, o uso de recursos da dramaturgia clássica para amplificar o impacto narrativo (muitas vezes beirando o “melodrama” – expressão que ganhou conotações pejorativas por se referir a um tipo de drama fácil).
O fato é que a trajetória de um personagem que busca algo, mas que acaba sucumbindo por conta de suas limitações, para finalmente ter uma epifania que o leva a vencer os obstáculos, acabou se tornando receita de sucesso. O confronto final, mais conhecido como clímax, é um dos momentos mais aguardados pela maioria dos expectadores de novelas, seriados ou filmes.
Dramaturgos Brasileiros
Ainda que o Brasil tenha grandes nomes da dramaturgia teatral – como Nelson Rodrigues, Artur de Azevedo, Oduvaldo Vianna e Plínio Marcos -, nossa dramaturgia televisiva também obteve estrondosos sucessos de audiência e é reconhecida como uma das mais importantes do mundo. As novelas brasileiras, em especial as produzidas pela Rede Globo, até hoje ditam tendências e já foram “exportadas” para centenas de países.
Entre os mais recentes e bem-sucedidos folhetins globais estão Avenida Brasil e Da Cor do Pecado (de João Emanuel Carneiro), Amor à Vida (de Walcyr Carrasco), Caminho das Índias e O Clone (de Glória Perez), Salve Jorge (também de Glória Perez), Por Amor (de Manoel Carlos) e A Vida da Gente (de Lícia Manzo).
Na lista das novelas consideradas clássicas na televisão brasileira estão Vale Tudo (de Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Bassères), Mulheres de Areia (de Ivani Ribeiro), Rainha da Sucata e Guerra dos Sexos (de Silvio de Abreu), Que Rei Sou Eu? (de Cassiano Gabus Mendes), Ti-Ti-Ti (de Maria Adelaide Amaral), Roque Santeiro (de Dias Gomes), Dancin’ Days (de Gilberto Braga), Selva de Pedra e Pecado Capital (de Janete Clair), Tieta (de Aguinaldo Silva), Xica da Silva (de Walcyr Carrasco) e Pantanal (de Benedito Ruy Barbosa) – as duas últimas, exibidas na extinta TV Manchete.
Dramaturgia e Cinema
De acordo com Vanessa Prieto, coordenadora dos cursos Filmworks – Técnico em Direção Cinematográfica e TAC – Técnico em Atuação para Cinema e TV da Academia Internacional de Cinema (AIC), o trabalho do ator para a câmera permanece em constante mudança. “A televisão está sofrendo uma rápida transformação, hoje em dia, por conta das séries. Sua linguagem tem se aproximado cada vez mais da cinematográfica”, explica.
Segundo Vanessa, no cinema o ator recebe uma obra fechada, na qual é possível conhecer todo o arco do personagem e trabalhar em sua composição dramática do início ao fim, mesmo que as cenas sejam gravadas de maneira não linear. Já na televisão, trata-se de uma obra aberta, uma vez que muitos autores vão escrevendo os personagens tendo em vista sua recepção e popularidade junto ao público. “Se o ator tiver carisma, ele pode ‘roubar a trama’ de uma novela, permitindo ao seu personagem mais espaço para crescer. Esse elemento de conexão com o espectador é mais forte na TV do que no cinema e no teatro, por isso muitas vezes os vilões são mais amados do que os mocinhos”, descreve a professora.
O tempo de composição do personagem, para Vanessa, é essencial no trabalho do ator, mas pode variar de acordo com o tipo de história que se está produzindo. No teatro, o ator tem a vantagem de se preparar muito bem durante os ensaios e, quando a peça estreia, ele já está “pronto”. Na televisão, é preciso ir compondo e descobrindo o personagem durante o processo. No cinema, por sua vez, o maior desafio é a falta de cronologia e as oportunidades reduzidas para contar a história.
“Em um filme, cada cena é muito bem escolhida, dramaturgicamente. O ator precisa estar consciente de que, quando a câmera roda, aquele momento é sua única chance”, ressalta a atriz. Nesse sentido, toda a preparação e a construção do personagem – que inclui entender o arco dramático, pesquisar referências e decorar falas – precisam ser muito bem-feitas, antes de se pisar no set. “É como se toda a equipe de filmagem fosse um time de futebol, preparando-se para fazer um gol. O ator é o artilheiro.”
Paixão Por Contar Histórias
Para Cristiano Burlan, diretor de cinema (“A mãe”, “Mataram meu irmão”) e ex-aluno da AIC, é impossível definir de maneira simplista o trabalho de um ator. No entanto, existem algumas qualidades necessárias a quem deseja seguir nessa profissão. “Acredito que algumas delas sejam a paixão pelo ofício, a disponibilidade e a curiosidade pela vida, além de uma disciplina espartana”, ressaltam.
Ao começar um trabalho com atores, Burlan considera essencial não apenas que o elenco compreenda a dramaturgia, mas que saiba lidar com a dúvida. “Cinema é uma aventura de linguagem. O equívoco, a hesitação e as inseguranças fazem parte desse processo de entendimento. Não saber tudo é importante para o trabalho”, afirma o diretor.
Vanessa completa que, para entender as transformações de seu personagem, o ator precisa, primeiramente, conhecer as estruturas dramáticas da história. “Aprende-se a atuar já pensando nos elementos da dramaturgia: quem é a pessoa que se está representando, onde ela vive, o que deseja, qual o conflito que irá enfrentar”. Nesse sentido, é como se o ator ajudasse a escrever o personagem, já que é ele quem dá vida ao que está no papel e colabora na criação de um ser humano tridimensional. “Quando o ator aprende a lidar com a narrativa, a cena cresce, porque ele passa a fazer escolhas conscientes e fundamentadas em reflexão”, acrescenta a atriz.
Principalmente no caso de personagens coadjuvantes, que não são apresentados ao ator com uma quantidade muito ampla de informações, é preciso que essa bagagem seja criada. “Às vezes, o ator constrói toda uma vida para seu personagem, o que dá mais profundidade à narrativa”. Ele também pode trabalhar junto à equipe de arte para ajudar na escolha de roupas e acessórios baseados nessa história pregressa, para depois apresentar essas sugestões ao diretor ou diretora. Vale ressaltar que nem todos os diretores trabalham com improviso, mas muitas das ideias do ator podem complementar e enriquecer o roteiro. “O filme acaba sendo um trabalho colaborativo entre ator, diretor e roteirista, mas tudo depende da abertura no set. Um diretor inteligente sabe ouvir seu elenco”, destaca Vanessa.
O Ator Dramaturgo
É indispensável, portanto, que o ator compreenda como funciona o roteiro e a dramaturgia, para que possa cumprir melhor sua função? “Da maneira como realizo meus filmes, o ator se torna um coautor”, explica Burlan. “Personagem, para mim, vai além das definições arquetípicas. É uma posição política e ideológica em relação ao mundo, assim como estética e fisiológica. Nos meus filmes, os personagens vão ganhando corpo e profundidade durante as filmagens, num trabalho de comunhão entre a direção e os atores.”
A compreensão do trabalho e de todos os aspectos que se relacionam ao filme são parte de um processo. Muitas vezes, a segurança ou o excesso de conhecimentos sobre determinado assunto podem se tornar contraproducentes. Afinal, nem sempre a aplicação de teorias e conceitos funciona no audiovisual. “O cinema é uma experiência que precisa estar sob riscos. O maior desafio do ator no cinema é deixar-se ser guiado pelo filme, é permitir-se pisar sobre um terreno desconhecido”, defende Burlan.
De acordo com o diretor, chegar ao set com muitas ideias prontas também pode dificultar a apresentação de algo ainda mais valioso: seus medos e fragilidades. Ter conhecimento, mas evitar a racionalização, é uma forma de encontrar liberdade criativa nesse ambiente tão amplo. “Os atores costumam utilizar muito a palavra ‘liberdade’, mas, quando têm isso em mãos, alguns se anulam, ao invés de se expandirem”, conclui.
Seguir seus instintos e abraçar a aventura de contar uma história pode parecer complicado e desafiador, em qualquer artística. Ambos os “filhos”” da dramaturgia, o teatro e o cinema (e, de certa forma, também a televisão) são artes irmãs, que se alimentam e crescem lado a lado. Para Burlan, talvez a grande diferença esteja na consciência da finitude: enquanto o teatro é efêmero, o instante no cinema é eterno.
Texto e pesquisa: Katia Kreutz e Equipe Academia Internacional de Cinema.
Fontes consultadas para esse artigo: Vanessa Prieto e Cristiano Burlan
Fotos: Alê Borges, Helder Filipe Martins, Divulgação