Neorrealismo Italiano
O que foi o movimento cinematográfico, suas principais características estéticas, filmes e cineastas mais importantes e suas influências para o cinema contemporâneo.
O Neorrealismo italiano foi um movimento cinematográfico que despontou nos anos 1940, caracterizado por histórias sobre a classe trabalhadora, filmadas com pouquíssimos recursos. A maioria tratava de temas como as dificuldades econômicas e sociais na Itália pós-Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945). Os filmes buscavam representar a mudança de mentalidade dos italianos e suas condições de vida, retratando o desespero, a opressão e a desigualdade que eles enfrentavam.
O movimento surgiu em uma época na qual o principal estúdio de produção cinematográfica italiano, a Cinecittà, havia sido bombardeado pelos inimigos de Benito Mussolini. Nesse contexto, um grupo de cineastas resolveu ir às ruas, em locações reais, usando iluminação natural e o mínimo de equipamentos, frequentemente com atores não profissionais, para capturar as histórias da população mais humilde.
O que foi o movimento
O estilo neorrealista foi desenvolvido por um grupo de críticos da revista Cinema, que incluía Luchino Visconti, Gianni Puccini, Cesare Zavattini, Giuseppe De Santis e Pietro Ingrao. Como não podiam escrever sobre política, já que o editor da revista era Vittorio Mussolini, filho de Benito Mussolini, eles atacavam os filmes chamados de telefoni bianchi (“telefone branco”), que dominavam a indústria cinematográfica italiana nos anos 1930.
Essas produções eram imitações das comédias norte-americanas e apresentavam cenários luxuosos, sempre contendo algum telefone branco (na época, o símbolo de status burguês, pouquíssimo acessível ao público em geral). Na contramão dos filmes comerciais populares, o grupo dos neorrealistas acreditava que os filmes italianos deveriam buscar sua inspiração nos escritores realistas da virada do século 20.
O Neorrealismo foi uma das bases do cinema moderno, uma espécie de reação à guerra e ao que ela representou. Alguns teóricos contemporâneos caracterizam o movimento menos como um apanhado de características estilísticas e mais como uma relação entre a prática cinematográfica e a realidade social pós-guerra na Itália. Muitos apontam a falta de um estilo consistente nos filmes desse período, embora seja constante a desconstrução dos formatos cinematográficos estabelecidos. O estudioso Vincent Rocchio definiu os filmes neorrealistas como obras que teciam a estrutura de ansiedade da época na própria estrutura narrativa.
Um pouco de história
Na época em que a Segunda Guerra Mundial estourou na Europa, a Itália já era governada por Mussolini desde 1924. Os filmes que predominavam nas bilheterias eram grandes produções em sets que remetiam a Hollywood, nos quais os personagens sempre encontravam resoluções para seus dilemas tolos. Também eram importados muitos longas norte-americanos, que passavam ainda mais longe da realidade do cidadão italiano comum. Federico Fellini afirmou, sobre a época: “Para a minha geração, nascida nos anos 1920, os filmes eram essencialmente americanos. Esses filmes eram mais eficientes, mais sedutores. Eles realmente mostravam um paraíso na terra, um paraíso em um país que chamavam de América.”
O Neorrealismo ganhou espaço na Itália, de fato, apenas com o final da Segunda Guerra Mundial e a queda de Mussolini. Na primavera de 1945, o ditador fascista foi executado e o país libertado da ocupação alemã. Esse período, conhecido como a “Primavera Italiana”, marcou uma ruptura com a velha forma de fazer filmes e uma entrada em um modo de produção mais realista. O cinema italiano deixou de usar cenários elaborados em grandes estúdios para gravar em locações no interior do país ou nas ruas das cidades.
Embora o real início do movimento seja contestado por alguns teóricos, o primeiro filme a ser considerado neorrealista foi Obsessão (Ossessione), de Luchino Visconti (1943). Contudo, foi em 1946 que o Neorrealismo ganhou popularidade internacional, com Roma, Cidade Aberta (Roma, Città Aperta), de Roberto Rossellini, que venceu o Grande Prêmio no Festival de Cannes e é considerado por muitos como o primeiro grande filme produzido na Itália pós-guerra.
O movimento declinou rapidamente nos anos 1950 e a maioria de seus filmes foi um fracasso de bilheterias. A visão da pobreza e do desespero, apresentados pelo cinema neorrealista, deixava a população desmoralizada, ansiosa por mudança e prosperidade. O público não parecia muito interessado em ver sua própria imagem na tela. Além disso, os primeiros efeitos positivos do período de milagre econômico na Itália, como o aumento gradual da renda, fizeram com que os temas neorrealistas perdessem um pouco sua relevância com o público da época.
Assim, muitos italianos preferiam o otimismo e o entretenimento dos filmes norte-americanos do mesmo período. A opinião do governo italiano com relação aos neorrealistas também não era muito favorável, como prova a declaração de Giulio Andreotti, então vice-ministro no gabinete de Alcide De Gasperi, segundo o qual Neorrealismo era “roupa suja que não deveria ser lavada e pendurada para secar em público”.
Principais características estéticas
Ideologicamente, as características do Neorrealismo italiano incluem uma ênfase no cidadão comum, recusa a julgamentos fáceis, preocupação com o passado fascista do país e com a devastação pós-guerra, além da valorização das emoções em detrimento das ideias abstratas.
Estilisticamente, o movimento evitava histórias com narrativas convencionais em favor de estruturas mais abertas, que se desenrolavam organicamente. Outro aspecto marcante era o estilo visual quase documental, de cinematografia granulada, com o uso de locações reais (geralmente, externas), ao invés de cenários em estúdios, assim como atores amadores, até mesmo para os papéis mais importantes. Os diálogos eram improvisados, como conversas, e os cineastas buscavam fugir de muitos artifícios estilísticos – como edição, fotografia e iluminação. O conceituado teórico André Bazin chamou o cinema neorrealista de “reportagem reconstituída”, porque os cineastas procuravam respeitar ao máximo a realidade do que estavam filmando e resistiam à tentação de manipular as imagens.
Quando atores professionais eram contratados para esses filmes, em geral eles faziam personagens muito diferentes dos que estavam habituados, além de contracenarem com amadores. As histórias normalmente exploravam as condições de vida das pessoas pobres, pertencentes à classe trabalhadora, que se encontravam dentro de uma ordem social simples, na qual a sobrevivência era o objetivo principal.
As cenas se constituíam de pessoas executando ações cotidianas, na luta do cidadão italiano, vivendo dia a dia em condições muito difíceis sob a ocupação alemã, mas fazendo o possível para resistir aos invasores. Com frequência, os filmes neorrealistas também traziam crianças como protagonistas, embora esses personagens tivessem mais características de observadores. Nesse sentido, a presença das crianças indicava seu papel no Neorrealismo como um todo: testemunhas das dificuldades do presente, carregando consigo a chave para um futuro melhor.
Entre 1944 e 1948, muitos cineastas neorrealistas acabaram se afastando um pouco dos ideais mais puros do movimento. Alguns diretores preferiram explorar alegorias fantásticas ou espetáculos históricos. Foi nessa época também que um Neorrealismo mais otimista emergiu, por meio da produção de filmes que misturavam os problemas da classe trabalhadora com as comédias populistas dos anos 1930.
No ápice do Neorrealismo, em 1948, Luchino Visconti adaptou I Malavoglia, um romance de Giovanni Verga, escrito durante o movimento realista denominado Verismo, no século 19 (o qual fundamentou as bases do Neorrealismo, que algumas vezes é referido como Neoverismo). Em sua adaptação, Visconti modernizou o universo da história, o que resultou em uma pequena mas marcante mudança no tom da narrativa. O filme resultante disso, A Terra Treme (La Terra Trema), foi estrelado somente por atores não profissionais e filmado na mesma vila onde se localizava o romance.
Segundo o autor Italo Calvino, o Neorrealismo italiano nunca foi uma escola de cinema com princípios teóricos bem definidos. Ela surgiu de descobertas relacionadas à cultura popular do país, que havia sido ignorada por muito tempo pela “alta cultura”. A retórica pomposa, tanto no cinema quanto na literatura, foi substituída por um interesse pelas coisas cotidianas. Essa busca pela verdade, era fundamentalmente humanista. O movimento significou uma liberdade recém-descoberta na Itália e uma vontade de provocar, de questionar e de contestar o desinteresse do espectador perante sua própria realidade.
Principais cineastas e filmes
O termo Neorrealismo foi usado pela primeira vez em 1943, pelo crítico de cinema Antonio Pietrangeli, referindo-se ao filme Obsessão, de Luchino Visconti. O período, muitas vezes chamado de Era de Ouro do cinema italiano, teve seu auge no final dos anos 1940, com os filmes Roma, Cidade Aberta, de Roberto Rossellini (1945); Shoeshine (Sciuscià), de Vittorio De Sica (1946); Paisà, de Rossellini (1946); Ladrões de Bicicleta (Ladri di Biciclette), de Vittorio de Sica (1948); A Terra Treme, de Visconti (1948); e Alemanha Ano Zero (Germania Anno Zero), também de Rossellini (1948).
Dois dos mais importantes precursores do Neorrealismo foram o diretor francês Jean Renoir, com Toni (1935), e o italiano Alessandro Blasetti, com 1860 (1934). Tanto Luchino Visconti quanto Michelangelo Antonioni trabalharam com Renoir e foram influenciados por sua obra.
Obsessão (1943), de Visconti, certamente foi um dos marcos do Neorrealismo italiano, porque deixou claro que algo muito original estava acontecendo no país. O diretor revelou uma Itália que não mostrava apenas paisagens pitorescas, mas também seus aspectos pobres, ordinários e insignificantes.
A chamada Trilogia da Guerra, de Roberto Rossellini, também representou muito para o movimento. Roma, Cidade Aberta (1945), Paisà (1946) e Alemanha Ano Zero (1948) obtiveram certo sucesso internacional, abordando os acontecimentos que levaram a Europa às ruínas. O primeiro dos três, em especial, foi extremamente importante para a expansão do Neorrealismo, inspirando outros cineastas que – mesmo não apresentando estéticas absolutamente homogêneas – estavam ligados por um modo particular de ver o mundo. Filmes como esses souberam capturar a tensão e a tragédia que fizeram parte da realidade europeia, naquele momento histórico.
Já o trabalho de Vittorio De Sica, quando comparado ao experimentalismo de Rossellini, parece um pouco mais tradicional e próximo das narrativas hollywoodianas. No entanto, o cineasta recorreu a atores não profissionais de maneira ainda mais contundente, inclusive usando crianças em papéis de destaque (Shoeshine e Ladrões de Bicicleta são exemplos disso), para mostrar a corrupção da infância por um mundo de adultos. Ao contrário das técnicas dramáticas de edição de Rossellini, De Sica preferia um estilo de câmera explorando a profundidade de campo, inspirado em Jean Renoir e Orson Welles.
O Neorrealismo continuou a ganhar adeptos na Itália até depois da queda de Mussolini. O grupo diverso de cineastas – alguns vindos de famílias afluentes (Visconti) e outros de origens pobres (De Sica) – usou o cinema como ferramenta de mudança social. A posterior mudança de foco pela qual passou o cinema neorrealista, das preocupações individuais para a trágica fragilidade da condição humana, pode ser percebida ao longo dos filmes de Federico Fellini. Seus primeiros trabalhos, A Estrada da Vida (La Strada), de 1954, e A Trapaça (Il Bidone), de 1955, são filmes de transição.
Posteriormente, as inquietações sociais deram lugar à exploração dos problemas pessoais. As necessidades do indivíduo, sua alienação e a trágica incapacidade de se comunicar acabaram se tornando o foco central dos filmes italianos que se seguiram, nos anos 1960. Nesse sentido, O Deserto Vermelho (Il Deserto Rosso), de 1964, e Blow-up: Depois Daquele Beijo (Blow-up), de 1966, ambos de Antonioni, internalizaram as questões neorrealistas no sofrimento e na busca por conhecimento dos personagens. Sobre Antonioni, Visconti chegou a declarar: “Parece que o tédio é uma das grandes descobertas do nosso tempo. Se isso for verdade, não há dúvida de que ele deve ser considerado um pioneiro.”
Legado para o cinema
O impacto do Neorrealismo foi enorme, não apenas na Itália como no surgimento da Nouvelle Vague na França, do Cinema Novo no Brasil, do Cinema Livre na Inglaterra, da Escola de Cinema Polonesa e de diversos outros grupos de cineastas ao redor do mundo. O movimento inspirou ainda diretores do movimento Cinema Paralelo Indiano.
Embora as tendências neorrealistas tenham tido mais destaque entre os anos 1940 e 1950, inúmeros diretores contemporâneos “beberam dessa fonte”, desde o norte-americano Jules Dassin até os britânicos Ken Loach e Mike Leigh, assim como o chinês Jia Zhangke. Martin Scorsese, conhecido por seus filmes abordando a cultura italiana, também faz parte do rol de cineastas que possuem uma dívida com os neorrealistas. Poucos movimentos tiveram influência tão profunda e duradoura no cinema global.
Muitos críticos defendem que o abandono da forma tradicional do fazer cinematográfico, típico das experiências neorrealistas, foi o ponto de partida para o cinema moderno como um todo. O movimento criou uma nova visão de mundo, na qual os principais elementos do filme possuíam maior valor estético do que funções narrativas, relacionando-se com o olhar do espectador muito mais do que com a ação dos personagens.
O Neorrealismo italiano se espalhou como uma espécie de modelo contrário ao cinema comercial hollywoodiano. Seus métodos ofereciam um modo de produção que não dependia de grandes recursos, falando sobre homens comuns. Os precursores da Nouvelle Vague – Jean-Luc Godard, François Truffaut, Jacques Rivette e Eric Rohmer – viam os filmes neorrealistas como provas de que era possível criar sem a necessidade de uma gigantesca estrutura industrial e de que os cineastas poderiam ser tão criativos quanto os escritores.
Mesmo na Itália, por volta dos anos 1960 e 1970, surgiu uma segunda geração de cineastas influenciados pelos filmes neorrealistas. Os trabalhos de Pier Paolo Pasolini, Bernardo Bertolucci, Paolo e Vittorio Taviani, Marco Bellocchio e Ermanno Olmi, em especial aqueles filmados em preto e branco, de certa forma retomaram algumas das características do Neorrealismo: fotografia documental, atores não profissionais, locações reais e temas sociais. Entretanto, essa geração também agregou à sua estética diversas lições da Nouvelle Vague francesa.
Outro italiano com raízes neorrealistas é Federico Fellini. Ele concordava com a ideia de usar a vida como matéria-prima para os filmes, embora tenha redefinido o conceito como “olhar a realidade com um olho honesto”. Com isso, Fellini pareceu ter compreendido o principal fundamento do Neorrealismo e o motivo pelo qual esses filmes ainda provocam admiração, nos dias de hoje: eles tratavam, essencialmente, da condição humana e de sua luta em meio às adversidades.
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*Texto e pesquisa: Katia Kreutz
**Foto Destaque: Ladrões de Bicicleta de Vittorio De Sica – fotos divulgação filmes