Se você acha que não sabe o que é narrativa transmídia, grandes são as chances de não saber só que ela tinha esse nome. Com certeza, algum filme ou série que você assistiu recentemente fez uso desse recurso em suas histórias, de uma forma ou outra.
O grande desafio desse tipo de narrativa é que ela pressupõe mudanças na forma e, muitas vezes, grandes adaptações no conteúdo ao contar uma história por meio de diferentes mídias. Essas mudanças, como veremos, podem assumir contornos radicais ou tentar manter, tanto quanto possível, a fidelidade à mídia original.
A escolha de como contar uma mesma história com elementos que se interligam perpassando diferentes meios requer muito talento do cineasta e, sobretudo, do roteirista. Em alguns casos, há um público específico e cativo que deve ser agradado, o que nunca é fácil, já que essas pessoas podem ter um conhecimento profundo da história original.
Abaixo, você confere a conceituação da narrativa transmídia, assim como dicas para sua aplicação em roteiros. Também vamos fazer uma breve análise da mecânica que existe por trás de uma adaptação como essa e dar exemplos de como aplicar. Leia até o fim!
Quais são as diferenças fundamentais entre as mídias?
A sutileza do raciocínio dos seres humanos atinge níveis em que é possível contar histórias apenas sugerindo acontecimentos. Em alguns casos, pode-se também optar por tramas mais densas, recheadas de detalhes e dados, coisa que os documentários fazem muito bem.
O Cinema é uma arte majoritariamente visual, embora contenha fortes elementos de narrativa na quase totalidade das vezes. No entanto, ele nunca vai ter o poder descritivo e detalhista da Literatura, por exemplo.
Esta, por sua vez, só pode sugerir ideias visuais de ambientes e paisagens, contando que a imaginação do leitor as preencha com suas próprias vivências pictóricas.
Então, cada meio tem suas características próprias, o que o torna mais facilmente adaptável a um certo tipo de história a ser contada. Os quadrinhos, por exemplo, são imagéticos, mas também dinâmicos. No storyboard (uma espécie de esboço da narrativa que o quadrinista realiza antes de começar a desenhar a obra propriamente dita) são decididos os recursos visuais de que se vai lançar mão para contar a história.
Então, a pintura, o desenho, o teatro, o cinema e os outros modelos de criação artística podem ser utilizados em maior ou menor grau, para a construção de narrativas. Mas, ainda que se trate de uma mesma história, é impossível que essa narrativa seja idêntica em todos eles.
O que é narrativa transmídia?
A narrativa transmídia consiste na utilização de diferentes modelos criativos para contar uma única história. Mas cuidado: não a confunda com a adaptação, que é a transposição de uma história presente em um meio para outro, com os ajustes que o novo método requer.
Seguindo a lógica da adaptação entre mídas, um livro pode ser transformado em filme, uma história em quadrinhos pode servir de inspiração para um ensaio fotográfico e assim por diante. O que importa é que haja uma narrativa e que, em essência, ela seja mantida quando for realizada a transposição entre as mídias.
A narrativa transmídia no cinema vai além da adaptação fílmica. Ela recorre a vários meios para contar uma mesma história, que pode começar em um filme, passar por uma série e terminar nos quadrinhos.
Se você precisa de um exemplo prático para compreender esse conceito, pense na saga Star Wars. Você pode ter contato com diversas partes de sua história nos filmes (como Uma Nova Esperança ou O Ataque dos Clones), aprofundar-se nessa história em animações (como A Guerra dos Clones) e entender melhor o universo em que a saga acontece nas séries de spin off (como é o caso da recém-lançada The Mandalorian).
Para que a narrativa transmídia serve?
Nas obras cinematográficas, há vários motivos para estender uma história a várias mídias. Por exemplo, é possível aprofundar as análises psicológicas de um ou mais personagens que poderiam parecer excessivamente planas em um longa-metragem de menos de duas horas de duração.
O cinema produzido nos dias atuais, mesmo aquele mais notadamente comercial, criou uma demanda no público. As pessoas se envolvem com seus protagonistas e antagonistas em níveis mais profundos que antigamente, muito em função do momento efusivo que vivem as séries produzidas por serviços de streaming, como a Netflix e a Amazon Prime Vídeo.
Assim, o expectador do século XXI é muito mais paciente com as narrativas que consome e o tempo de duração delas. Como decorrência disso, ele também passa muito mais horas assistindo ficção na televisão ou cinema do que acontecia em outras épocas.
No passado, filmes com mais de três horas de duração, como é o caso da trilogia O Poderoso Chefão, por exemplo, eram consideradas obras de fôlego. Hoje, boa parte das séries mais assistidas contam com cerca de 30 episódios de uma hora cada, em média.
E já que o objetivo é explorar à exaustão das personagens, suas histórias e pontos de vista, a narrativa transmídia vem muito a calhar. Ele oferece um “descanso” da mídia original em que a obra foi criada, aproveitando o carisma dos mesmos personagens, mas expondo-os a situações de tensão diversas, fazendo uso de meios narrativos diferentes.
Quais são suas principais aplicações?
Há uma série de situações em que vale a pena recorrer a uma narrativa transmídia. Em geral, ela não é algo fácil de se fazer, mas, se bem utilizada, essa técnica pode ser muito bem-sucedida em algumas situações:
- quando é necessário desviar o foco narrativo;
- nos momentos em que certos personagens precisam ser melhor caracterizados;
- quando a descrição ou narração de certos eventos precisam ser melhor explicados, extrapolando o tempo reservado a ele em uma única obra;
- para unir ou relacionar dois filmes de uma mesma saga cuja relação é tênue.
Há outras maneiras menos comerciais de aplicá-la, mas é bom ressaltar que a narrativa transmídia exige um pacto ficcional profundo. Afinal, ela costuma propor histórias longas e esmiuçar detalhes que as narrativas comuns deixam passar despercebidos.
Observada essa ressalva, não é exagero dizer que não há limites para a aplicação da narrativa transmídia. Ela depende apenas de um trabalho cuidadoso e criativo da equipe de roteiro, antes de mais nada.
Como ela funciona?
Para explicar como a narrativa transmídia funciona, ninguém melhor que o próprio criador do conceito, Henry Jenkins, que o cunhou em 2009, no seu livro Cultura da Convergência:
“Uma história transmídia desenrola-se por meio de múltiplas plataformas de mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo. Na forma ideal de narrativa transmídia, cada meio faz o que faz de melhor — a fim de que uma história possa ser introduzida num filme, expandida pela televisão, romances e quadrinhos; seu universo possa ser explorado em games ou experimentado como atração de um parque de diversões.”
Logo, para que ela funcione é necessário, antes de tudo, planejamento. O sucesso desse tipo de estratégia consiste em desdobrar uma história em várias partes e, com base na natureza de cada uma dessas partes, escolher a melhor mídia para representá-la.
Suas possibilidades práticas são muitas: ela pode subsidiar uma campanha publicitária que se desenvolve em textos, imagens e vídeo, por exemplo.
Como fazer uma narrativa transmídia?
Esse tipo de narrativa deve ser planejada, como dissemos acima. Isso porque ela envolve profissionais de diversas áreas, trabalhando em uma perspectiva multidisciplinar.
Então, o mais difícil não é pensar o que vai acontecer e em que meio artístico, mas certificar-se de que haja uma coerência estética entre as partes, coisa que só acontece com uma equipe muito integrada.
Isso pode ser conseguido quando o roteiro ou, pelo menos o brainstorming que dará origem a ele, for elaborado em grupo. Se não for possível juntar toda a equipe, experimente marcar reuniões setoriais com todos os roteiristas envolvidos, permitindo que eles discutam detalhes e conceituações importantes para a coerência da trama como um todo.
Outro ponto importante é uma revisão atenta para evitar furos no roteiro. Muitas narrativas transmídia envolvem lapsos temporais, como quando troca-se de mídia e volta-se no tempo para contar a história de algum personagem ou uma sequência de acontecimentos que levou a uma decisão importante de um deles.
Mesmo que grandes audiências sejam relativamente tolerantes com furos no enredo, a ausência deles quase sempre é o que diferencia um bom filme de uma obra memorável. Uma narrativa transmídia bem fechada prende a atenção das pessoas e as conquista como nenhum outro recurso técnico cinematográfico.
Os filmes da Marvel utilizam narrativas transmídia?
Também conhecida como “Casa das Ideias”, a Marvel Comics, que começou como uma editora independente de quadrinhos, passou por um grande processo de renovação econômica e de pensamento nos últimos 15 anos.
O início de suas atividades data da primeira metade do século 20, mais especificamente do ano de 1939. Ao que tudo indica, daqui a 19 anos, a Marvel deve comemorar seu centenário em grande estilo, como uma das maiores e mais revolucionárias produtoras de conteúdo de todos os tempos.
E a que se deve o estrondoso sucesso da adaptação fílmica que a editora fez dos seus quadrinhos para o cinema? Em parte, a uma utilização consciente e muito bem planejada do conceito de transmídia.
Quadrinhos, animações, séries e muitos longas-metragens transformaram a chamada Saga do Infinito ou Jornada do Infinito em um fenômeno da cultura pop. Ela atingiu cifras multibilionárias, deixando muito para trás os valores da HQ de 1990 escrita por Jim Starlin, que serviu de ponto de partida para as atrações cinematográficas recentes.
A narrativa transmídia na Saga do Infinito
Contando apenas os longas, foram lançados 32 filmes da saga. Há, ainda, séries, animações e quadrinhos que se relacionam direta ou indiretamente com os eventos descritos nos filmes e suas consequências, o que torna difícil dizer exatamente quantas publicações e outras obras secundárias estão incluídas.
Várias são as análises de críticos conceituados que afirmam que a narrativa transmídia foi o grande trunfo da Marvel e da Disney — empresa que adquiriu os direitos da Marvel Entertainment Group, braço da editora fora do mundo dos quadrinhos — para chegar a tantos fãs antigos e, ao mesmo tempo, fidelizar novos espectadores.
É curioso notar como apreciadores de quadrinhos muito exigentes com as histórias que leram na juventude e um público até certo ponto leigo coexistem muito facilmente nas salas de cinema da Marvel, sem que nenhum dos dois tipos se desinteresse pelos filmes.
A Saga do Infinito apostou em uma fórmula interessante para conseguir esse feito: a criação de obras que se completam mutuamente, mas que, separados, têm existência própria. Então, é possível compreender as histórias em uma perspectiva macro (o duelo dos heróis contra o vilão Thanos) ou micro (suas origens e dificuldades locais).
A importância das cenas pós-crédito
Pequenos trechos narrativos que aparecem depois da exibição dos créditos cinematográficos não foram invenção da Marvel. No entanto, foi na Casa das Ideias que elas começaram a ser utilizadas a favor da narrativa transmídia.
Passagens que poderiam causar confusão, se utilizadas no meio dos longas (afinal, nem todos os espectadores estavam familiarizados com a saga em sua extensão) passaram a ser exibidas depois de terminados os filmes.
Via de regra, a função dessas cenas era apresentar a próxima obra ou interligar a história que acabara de ser exibida à saga como um todo. A fórmula deu certo, e tornou-se hábito as pessoas esperarem pacientemente nas salas de cinema, ao final dos filmes, pelo momento de receber algum esclarecimento ou antecipação a respeito da trama.
Tomado em conjunto, o faturamento dos filmes da Casa das Ideias é algo sem precedentes na história do cinema ou na indústria do entretenimento em geral. Embora alguns filmes tenham sido questionados isoladamente, é incontestável o sucesso da ideia de narrativa transmídia aplicada à trama, naquela que foi a mais ousada aplicação do conceito já vista.
De conceito acadêmico da área linguística e literária a elemento reconhecido pelo grande público, a narrativa transmídia hoje é mais real e compreensível que nunca. Esperamos que este artigo tenha ajudado a deixar essa definição mais clara para você.
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