Marina Person fala sobre desafios da carreira no cinema
*Por Katia Kreutz – Foto Yuri Pinheiro
“Você precisa estar preparado para fracassar.” Essa foi uma das frases que marcaram quem esteve no primeiro dia da 12ª Semana de Orientação da Academia Internacional de Cinema e ouviu Marina Person contar um pouco sobre sua trajetória como produtora, atriz e diretora de cinema. Pequena e de aspecto até um pouco frágil, a diretora parece se transformar em uma gigante quando começa a falar.
Marina Person é muito conhecida pela “geração MTV”, por sua passagem na emissora como VJ, ao lado de João Gordo e Adnet. Quem foi adolescente nos anos 1990 tirava suas referências culturais daquele canal de jovens, feito por jovens. Trabalhar na MTV na época era equivalente a um emprego hoje no Google, como observou um dos participantes da palestra. Marina contou um pouco sobre sua carreira, lembrou de histórias que ficaram marcadas na memória, mas acima de tudo quis ouvir e conversar com os alunos que encheram o estúdio da AIC numa noite quente de terça-feira.
“Califórnia”
O bate-papo começou com a cineasta contando um pouco sobre seu primeiro longa-metragem de ficção, “Califórnia”, que foi exibido antes da palestra. Ela lembra que suas primeiras anotações foram em 2004 e o projeto levou dez anos para ser filmado. “A inspiração inicial foi minha própria experiência, minha história de adolescente em São Paulo nos anos 1980”. Marina vê elementos autobiográficos em vários personagens, mas uma das coisas que mais gosta no longa é o fato de poder se reconhecer nesse trabalho.
Mas sobre o que é esse filme? A diretora conta que pretendia abordar o momento de abertura política, das Diretas Já no Brasil, em 1984, que foi algo muito significativo em sua juventude – a primeira vez que o país falava em democracia, depois de vinte anos de ditadura. “Eu me lembro da sensação de ir para as ruas. Era uma voz uníssona, todo mundo do mesmo lado gritando a mesma coisa”, explica.
Outra questão que a cineasta queria abordar no filme era a da AIDS, já que sua geração foi a primeira que iniciou a vida sexual junto com a doença, que era um tabu enorme na época. A AIDS matava extremamente rápido e ninguém sabia o que era, não havia nada a se fazer. Além disso, a doença era muito carregada de preconceito, associada à promiscuidade, cercada de ignorância e falta de informação.
“A Califórnia pra mim era esse sonho, esse lugar de liberdade. A gente ouvia aquele slogan: Brasil, ame-o ou deixe-o. E, por causa da repressão, muita gente saiu do país pra tentar a vida em outros lugares”, continua Marina, para quem a ideia do título do filme veio do pensamento de que, muitas vezes, nossos maiores sonhos acabam não sendo do jeito que imaginamos. Ela cita também uma frase de John Lennon, que serviu de inspiração para o roteiro: “A vida é o que acontece quando você está ocupado fazendo outros planos.” Isso porque quase nunca temos tudo o que sonhamos, mas precisamos ficar atentos para as coisas boas que não estavam nos planos.
Dando vida ao filme
Ainda sobre “Califórnia”, Marina aborda o trabalho de preparação de atores, já que grande parte do elenco de seu longa era muito jovem e inexperiente. Para ela, foi essencial que eles entendessem a época que estavam retratando– o que era viver sem celular, ter outros jeitos de se comunicar. As cenas de nudez também foram bastante delicadas, já que esse tipo de situação sempre é difícil para todo mundo. “Eu estava com muito medo, mas no final deu tudo certo e a cena de sexo é uma das minhas preferidas do filme”.
A arte de lidar com atores, aliás, foi um dos ensinamentos de Marina Person para o público do bate-papo. Ela lembra de ter participado de uma palestra com Wim Wenders, na qual o cineasta disse uma das coisas mais importantes que já ouviu sobre atores: não existe um ator igual ao outro. Todos são seres únicos, individuais, por isso é preciso ver o que funciona em cada contexto. Alguns atores precisam de muito ensaio, vão esquentando aos poucos e só conseguem dar seu melhor na décima tomada. Outros não podem falar muito antes da cena, dão seu melhor na primeira tomada e depois vão perdendo a energia, não se tira mais nada deles. “Você precisa torcer é para não ter os dois tipos de atores na mesma cena”, ela brinca.
Quanto às músicas de “Califórnia”, Marina explica que todas foram escolhidas por ela e a lista inicial era enorme, por isso a parte complicada foi escolher o que ficaria de fora. O longa tem 15 músicas, 8 delas estrangeiras, todas autorizadas. Cada uma foi duramente batalhada e a cineasta conta que gastou muito dinheiro na trilha, que inclui canções de artistas como New Order, The Cure e David Bowie.
Como todo artista, a cineasta teve momentos de crise criativa durante a produção do filme, especialmente por se tratar de um projeto tão longo. “Eu não aguentava mais aquela história, mas já tinha investido tempo e dinheiro pra colocar o projeto na lei, não dava pra voltar atrás.” O sentimento passou e se transformou em empolgação quando ela encontrou os atores. Afinal, uma coisa é imaginar o filme no papel e outra é estar nas locações, com a equipe de filmagem. A fase de adaptar sua imaginação para a realidade renova o frescor da história.
Cinema no sangue
Filha do conceituado cineasta Luis Sérgio Person, Marina conviveu com o fazer cinematográfico desde muito cedo. Ela sempre pensou que faria cinema, embora não soubesse muito bem se seria atriz, diretora ou fotógrafa. Foi estudando na ECA/USP que realmente teve contato com a obra de seu pai. “Até então, todos me diziam que o trabalho dele era incrível, mas eu desconfiava que eram apenas amigos e familiares contando coisas para uma menina que perdeu o pai com menos de sete anos. Toda a relação que eu tinha com o cinema dele passava por esse lado afetivo. Quando entrei na faculdade e vi que seus filmes eram estudados na escola, tive outra visão”.
Apesar do legado de seu pai, Marina afirma que nunca sentiu cobranças ou expectativas no sentido de dar continuidade à obra dele ou “herdar o talento”, se é que isso existe. Ela teve, sim, dúvidas se deveria realizar o documentário sobre o pai (“Person – Um cineasta de São Paulo”, lançado em 2003). No entanto, acabou percebendo que esse era um filme que somente ela poderia fazer, sobre uma filha privada dessa convivência com a figura paterna. “O filme foi muito importante porque descobri outro lado do meu pai, que eu não conhecia. Foi uma jornada pessoal, que me poupou vários anos de análise”, brinca.
Mulheres na direção
Perguntada sobre um tema bastante atual, o da dificuldade de ingresso das mulheres no mercado de trabalho audiovisual, especialmente na direção, Marina observa que, de fato, as pessoas estão começando a perceber esse problema. Por que existem tão poucos filmes dirigidos por mulheres, se as escolas de cinema estão cheias de meninas? O que está acontecendo de errado nesse processo? “Tem muita mulher na produção, algumas no roteiro e montagem. E aí você se pergunta: elas não estão dirigindo por que não estão interessadas? Eu não acredito que seja isso”, afirma. De acordo com Marina, o problema talvez possa estar nas comissões de seleção de projetos dos editais, que são formadas em sua maioria por homens, ou nos próprios festivas de cinema, cujos filmes em geral também são selecionados por profissionais do sexo masculino. “Por que será que, em 89 anos de Oscar, só uma mulher ganhou como melhor diretora? Isso está estranho, não?”
Segundo Marina, quando analisamos os números de profissionais do sexo feminino no cinema, eles falam tudo. E as coisas não precisam ser assim. Filmes dirigidos por mulheres exploram mais temáticas femininas, as personagens são mais interessantes, há mais mulheres na equipe… “No meu próprio filme, todas as cabeças de equipe foram mulheres, mas não foi uma ação afirmativa, simplesmente aconteceu de forma natural. O filme não precisa ser de mulher ou de homem, mas esses números precisam mudar. Se as comissões dos editais de fomento não tiverem 50% de mulheres, a gente vai continuar perpetuando a ideia de que o cinema é uma atividade masculina”, ressalta.
Outra questão está na formação de opinião. Marina observa que, nos grandes veículos de mídia nacionais, não há muitas jornalistas mulheres com cargos fixos. Há décadas as redações são dirigidas por homens e formadas por homens. Ou seja, se não existe uma formação de olhar pela ótica feminina, o espaço da crítica para filmes feitos por mulheres também vai ser pequeno. Para a cineasta, essa cadeia de produção precisa ser revista de ponta a ponta. “Por isso precisamos bater na tecla da igualdade: para equiparar esses números. Não estamos falando de mulher só ver filme de mulher e homem só ver filme de homem. A nossa luta agora é pela igualdade, para termos oportunidades iguais.”
Encruzilhada profissional
Vencendo os desafios do mercado, outra pergunta de muitos estudantes de cinema diz respeito ao que fazer para descobrir que área seguir. Transitando por trabalhos tão diferentes, do documentário à ficção, Marina explica que os caminhos nunca são muito claros. Quando se está começando, há inúmeras possibilidades. Contudo, ela também acredita na versatilidade. “Existe uma tentativa de enquadrarem as pessoas em apenas uma coisa, mas às vezes você é mais do que aquilo. O que eu posso dizer é que você deve perseguir o que gosta, mesmo se depois descobrir que não é bem o que queria”, aconselha.
Marina lembra que entrou na faculdade querendo ser diretora de fotografia, mas acabou desistindo por motivos que, hoje, ela considera errados. Na época, para ser fotógrafo era necessário passar pela função de segundo assistente de câmera, ou seja, a pessoa que carregava as malas pesadíssimas de equipamentos. Embora não exista nada no trabalho do diretor de fotografia que exija força física, ela não sabia que era possível questionar essa hierarquia. Com seu porte pequeno e sem muitos músculos, Marina simplesmente não tinha condição física para essa função, então resolveu partir para outras áreas.
Por isso, também, ela ressalta que sempre é importante tentar. “Só dá pra saber fazendo. Você vai errar, e tudo bem; vai se frustrar, e é isso mesmo. Se decidir que quer fazer outra coisa, mude. Não tem idade para aprender algo novo, começar uma nova carreira. Essa disposição é importante. Não pode ter medo de fracassar, porque o fracasso faz parte. Não se deixe abater, aceite aquilo como uma experiência”, enfatiza.
A liberdade de errar
Para a turma de futuros diretores e meros interessados, Marina Person deixa uma lição não apenas para a carreira profissional, mas para a vida: a gente erra muito mais do que acerta, mas podemos aprender e evoluir com os nossos erros. Em qualquer trabalho criativo, é preciso não ter medo de errar, senão você pensa que aquilo nunca vai estar suficientemente bom para alguém ver. Em tempos que pregam a perfeição, o conselho da cineasta é deixar isso de lado e não sofrer tanto, nem se abater com a autocrítica.
Essa “disposição para o fracasso” foi algo que permeou a fala da cineasta. Mesmo estando no mercado de trabalho há muitos anos, ela sabe o quanto isso é muito difícil, ressaltando inclusive que, muitas vezes, essas são coisas que não se comenta na faculdade. “É óbvio que a gente tem que trabalhar para acertar, mas ter esse compromisso de ser incrível o tempo inteiro é um ponto de partida perigoso”, completa.
Já ao final do bate-papo, Marina explica que a situação do cinema brasileiro anda um pouco incerta, já que ninguém sabe muito bem o que vai acontecer. Os processos são lentos, os fomentos não estão acontecendo, o governo promete coisas e depois não faz. O pior de tudo, entretanto, é sociedade considerar a cultura supérflua. “A gente depende muito de uma consciência da importância da cultura”, reforça. “As pessoas não entendem que cultura é identidade, é nossa história. Se não tivermos isso, a gente vai ser apenas pasto pra soja. Mário de Andrade já dizia que a cultura é tão importante quanto o pão. A gente nunca pode abrir mão de fazer nossas próprias coisas.” Vindas de alguém que vem fazendo sua parte para deixar uma marca no cinema brasileiro, as palavras são um alerta, mas também incentivo e inspiração.