Beto Brant fala sobre “Pitanga”, cinema autoral e resistência na AIC
*Por Katia Kreutz, Foto: Yuri Pinheiro
Com seu jeito despojado e bem humorado, Beto Brant começa o bate-papo com os participantes da Semana de Orientação na Academia Internacional de Cinema contando que acaba de voltar de Recife, onde estava com o cineasta Cláudio Assis. Do calor pernambucano para o paulistano, a conversa passa por vários tópicos, do fazer cinematográfico à situação política do país.
“Pitanga”
Como introdução, Beto fala um pouco sobre seu novo documentário, “Pitanga”, que acaba de ser exibido com exclusividade na AIC. O longa conta um pouco da história de Antônio Pitanga, um dos maiores atores do cinema nacional, protagonista de filmes importantes de Glauber Rocha, Cacá Diegues e Walter Lima Jr.
Beto Brant comenta sobre o momento político pelo qual o Brasil tem passado, um período pessimista e um pouco desalentador, em que as pessoas sumiram da rua, no qual o discurso de Pitanga – um discurso afirmativo, do negro, da mulher, de resistência – é mais atual do que nunca. “É importante poder falar das coisas que ele fala e ter essa influência, esse poder de afeto, de uma posição íntegra com a vida”, explica.
O cineasta conta que Pitanga vinha sendo esquecido. “Eu acho que até ele estava esquecendo quem era. Andava triste, me disse que esse era seu último voo antes do mergulho. E agora, depois do filme, já o chamaram para diversos trabalhos, ele está com a agenda lotada.” A recepção que o filme tem tido junto às plateias onde foi exibido tem dado novo fôlego tanto para o cineasta quando para seu protagonista.
As palavras de Pitanga, quando o diretor o abordou para fazer o documentário, foram essas: “Eu nunca participei de movimento negro. Eu sou um negro em movimento.” Então, a ideia não foi de filmar o que Beto Brant imaginava que Antônio Pitanga fosse, mas embarcar na jornada dele e conhecer esse movimento. “É uma viagem do artista, reencontrando seu passado e dando a ele um novo significado.”
Uma observação que aflora na conversa, que é algo interessante tanto na fala de Pitanga quanto na maneira como Beto organiza seu filme, é que as narrativas da história dele mostram um pouco da história do cinema. Isso traz à tona uma discussão sobre o abismo que existe, hoje, na política e na maneira como os artistas têm desenvolvido suas narrativas cinematográficas.
Cinema autoral
Beto acredita que “ir para a rua” com esse filme, lembrar que já houve resistência política dentro do cinema, foi uma de suas propostas com “Pitanga”. Combater um pouco esse lado “careta” que a produção audiovisual nacional tem abraçado.
A narrativa dominante no mercado, nos tempos atuais, parece ser a da massificação, de uma linguagem que busca o sucesso de bilheteria. “É tudo muito pobre”, lamenta o cineasta. Na contramão disso, ele busca o fazer cinematográfico como invenção. “O cinema, para mim, sempre foi uma forma de observação da aventura que consigo ter com a vida. Meu enfrentamento direto com a realidade. Uma forma de encontrar quem eu sou.”
A câmera, para Beto Brant, não está a serviço da história, mas sim do olhar do artista. É o cineasta quem escolhe o que vai enquadrar, de que modo quer narrar aquela história, que personagem vai colocar ali. “Tudo é sobre escolhas. E hoje em dia a gente vê muito o olhar sendo colocado em segundo plano, a favor de um mercado, de um negócio”, afirma.
Na época em que Beto Brant começou a fazer cinema, no governo Collor, houve um resgate do cinema brasileiro, mais autoral. “De repente valorizaram nosso jeito de entender cinema. Foi aí que consegui fazer meu primeiro filme”, lembra o diretor. Hoje, ele continua resistindo e se reinventando, trabalhando com parceiros, fazendo documentários e não esperando dinheiro de editais. “A gente tem que fazer um cinema possível, mas livre, sem intervenção”, defende.
Desafios do fazer cinematográfico
Perguntado sobre as maiores dificuldades que já enfrentou em sua carreira, tanto criativas quanto de gestão, Beto diz que o problema maior é sempre de financiamento. Ele conta que sempre produziu seus trabalhos, nunca ficou esperando que os outros fizessem as coisas por ele. “Mesmo que você tenha uma produtora, uma empresa pra fazer seu filme, ele vai ficar parado se você não correr atrás.” Esse tipo criador, que faz a produção pessoalmente, pode encontrar canais mais abertos. “Muitas vezes é chato, sim. Mas é necessário.”
Outro desafio está em lidar com a equipe. Tendo iniciado sua trajetória profissional no teatro, Beto explica que é complicado trabalhar em grupo, porque cada um imprime uma vontade diferente, o que muitas vezes gera incompatibilidades e instabilidade. Isso é ruim para um trabalho a longo prazo, como o cinema. “Às vezes demora quatro, cinco anos para um projeto ser concluído. Em cinco anos a cabeça da gente muda, então tem que reinventar o filme.”
De acordo com o cineasta, é preciso muita perseverança para levar a cabo um longa-metragem, incorporando novas ideias e ao mesmo tempo mantendo o projeto vivo. Além disso, todos precisam estar envolvidos na história e unidos na sua realização. A equipe não deve simplesmente ser comandada pelo diretor, mas acrescentar, trazer novas visões.
Leitura da vida
Sobre sua relação com documentários, Beto conta que sua experiência com cinema sempre foi um pretexto para sair, observar a vida, perguntar, entrar onde não deveria, investigar o mundo. Tendo feito muitas adaptações literárias, seu maior desafio era pegar algo que saiu da imaginação de um escritor e não reproduzir aquilo, mas fazer uma nova leitura. “Vou partir desse contexto que ele concebeu e tentar buscar conexões minhas. Então meu olhar está sempre ali. A experiência do cinema está sempre conectada com a minha observação, com o meu movimento na vida.”
Esse olhar para a vida se revela principalmente na edição. “A montagem é a construção de uma sintaxe, de um discurso. Como o escritor usa a palavra, você usa imagens e som. Você tem que ser o primeiro leitor do seu filme. Por isso é que muitas vezes demora tanto”, ressalta. No caso de “Pitanga”, por exemplo, o tempo de montagem foi de um ano e meio. “Foi uma lapidação. Estávamos sem dinheiro pra finalizar, demorou… Foi difícil.”
O longa foi co-dirigido pela atriz Camila Pitanga, filha de Antônio Pitanga. Beto afirma que não apenas o compartilhamento de ideias foi importante, mas a presença dela no set também. “Teve um momento em que ela falou para eu ir sozinho, pois estava muito ocupada com outros trabalhos. Mas eu disse: Como? O Pitanga precisava contar a história dele para a Camila, por isso é que o filme transborda afeto”, explica.
Festa no set
Em certo momento, Beto Brant define o set de filmagem como uma festa, uma rave – o que faz a plateia rir, mas fala de algo muito importante para quem pretende seguir na carreira de diretor de cinema: a gravação é o atelier do cineasta e precisa ser um processo prazeroso. “É o momento da construção do filme, dos planos. É delicioso!”
Beto conta que foi aprimorando um método de trabalho, com o passar dos anos. Primeiramente, sabendo reconhecer a necessidade de agir diferente com atores e não-atores. “O ator incorpora a repetição, vai inventando e arriscando, já o não-ator vai ficando cada vez pior”, explica.
Outra coisa muito importante, para ele, é que a equipe possa fazer uma imersão na locação, realmente conhecendo o ambiente onde irão trabalhar. “Quando começa a filmagem, o set tem vida. Não é gravar um filme e chegar em cima da hora, a arte ficar colocando coisas, o diretor atrasado”, compara. Ele relata que costuma ensaiar com os atores na locação, se possível no horário em que a cena iria acontecer de fato.
“O problema é que muitas vezes o fotógrafo chega com o eletricista e fica querendo colocar refletores”. Ao invés disso, Beto passa o dia no local e vê como a luz funciona. “Não dá para lutar contra a luz”, completa. Segundo ele, o que acontece no cinema tradicional é que uma equipe chega para filmar de manhã, tem várias tomadas para fazer, algumas horas depois a luz é outra e o diretor de fotografia começa a tentar emular a luz do início. “Vira uma agonia! Aí você quer filmar do outro lado e demora mais duas horas pra iluminar”.
Por isso, a estratégia do diretor é escolher as locações de acordo com o horário bom da luz, ensaiar e definir tudo antes. Assim, quando chega a hora de filmar, ganha-se agilidade e a experiência se torna mais gostosa. “Claro que dá pra colocar luz no set, mas não ser escravo dela. O tempo não é o do fotógrafo, da luz, do cabo, do gerador. É o tempo da ação, do ambiente. Por isso é preciso visitar, conhecer e descobrir a locação, criar essa intimidade com ela”, finaliza.
Seguindo em frente
Uma das últimas perguntas dos participantes do bate-papo para Beto Brant foi quase pessoal: “O que te move na hora de escolher uma história para contar?” Com tranquilidade, ele responde que vai procurando, por aí, e acaba encontrando. Atualmente, está trabalhando em um projeto com Marçal Aquino, uma adaptação de um livro do escritor.
Para quem tem uma relação de tranquilidade e aceitação com seus filmes, o jeito é sempre seguir em frente. “Eu nunca me arrependi de nenhum projeto. Quando você faz um filme, ele é você naquele momento. Então eu respeito.” Beto acredita que o cinema é feito de escolhas: o tempo inteiro o diretor está escolhendo quem é, que diálogo é importante para ele. Por isso, o cineasta não abre mão de contar histórias que, de alguma forma, o definam.
E como ele vê o futuro do cinema brasileiro? “A política hoje é outra, vão reduzir bastante as fontes de recursos. Vai ter cada vez mais esse filme negócio, pra TV, séries… Agora o mérito é bilheteria de shopping.” Embora isso desmotive um pouco, Beto vê que essa situação também pode motivar, criar uma vontade ir para a rua. “Nos momentos de crise, a sociedade sempre se manifesta no meio artístico de maneira contundente. Então estou acreditando nos cineastas que vêm por aí, buscando novas maneiras de testemunhar seu tempo”, conclui o diretor, que não pretende desistir dessa busca por uma leitura especial do mundo – uma busca que, no fim das contas, é a verdadeira função do artista.