O que foi o movimento cinematográfico, suas principais características estéticas, filmes e cineastas mais importantes e seu legado para o cinema.
“Um filme deveria ser como uma pedra no sapato.” Lars von Trier
O que foi o movimento
O movimento Dogma 95 começou, como o próprio nome já diz, em 1995. Foi uma iniciativa dos diretores dinamarqueses Lars von Trier e Thomas Vinterberg. Juntos, os cineastas criaram o “Manifesto Dogma 95” e o “Voto de Castidade”, estabelecendo algumas regras para o fazer cinematográfico, baseadas em valores tradicionais – como história, atuação e tema, desprezando o uso de efeitos especiais elaborados ou de recursos tecnológicos. Foi uma forma de colocar novamente o poder nas mãos do diretor, como artista, ao invés de simplesmente dar aos estúdios a autonomia sobre a criação dos filmes.
Posteriormente, juntaram-se ao movimento os diretores Kristian Levring e Søren Kragh-Jacobsen, também dinamarqueses. Esse grupo de cineastas formou o Coletivo Dogma 95 (Dogma Brethren). O movimento atuou até o ano de 2005, avançando da Dinamarca para diversos outros países do mundo. Outras figuras importantes foram Jean-Marc Barr, Harmony Korine, Anthony Dod Mantle, Paprika Steen, Susanne Bier, Richard Martini e Lone Scherfig.
Um pouco de história
Lars von Trier e Thomas Vinterberg foram os responsáveis por escrever, em co-autoria, o manifesto e os “votos” que o acompanharam. De acordo com Vinterberg, o texto foi escrito em 45 minutos. A intenção inicial do documento era resgatar alguns ideais lançados por François Truffaut, em seu ensaio para a revista Cahiers du Cinéma, Une certaine tendance du cinéma français” (Uma certa tendência do cinema francês), de 1954. Afinal, a essência da Nouvelle Vague, que inspirou o Dogma 95 em vários aspectos, era libertar o cinema de suas amarras por meio de filmes experimentais. O diferencial dos dinamarqueses estava na maneira de buscar essa experimentação.
O movimento foi anunciado por seus dois fundadores em março de 1995, em Paris, na França, durante uma conferência de cinema na qual diversos profissionais do mundo inteiro haviam se reunido para celebrar o primeiro século da sétima arte e contemplar seu futuro incerto, diante da hegemonia dos filmes comerciais, principalmente dos grandes estúdios hollywoodianos. Quando foi chamado para dissertar sobre o tema, Lars von Trier surpreendeu o público do evento com uma verdadeira chuva de panfletos vermelhos, falando sobre o Dogma 95.
Em respostas às críticas ao movimento, von Trier e Vinterberg declararam que seu desejo era simplesmente estabelecer um novo extremo. Afinal, em uma indústria baseada em orçamentos multimilionários, os cineastas concluíram que era necessário equilibrar essa dinâmica de alguma forma.
Curiosamente, a iniciativa surtiu impacto na produção independente dinamarquesa, já que o governo do país aumentou o apoio financeiro ao cinema em 70% durante o período no qual o Dogma 95 atuou na Europa.
O primeiro filme do movimento foi Festa de Família / Festern (1998), de Vinterberg. Vencedor do Festival de Cannes no ano de seu lançamento, o longa foi muito aclamado pela crítica. O segundo filme do Dogma, Os Idiotas / Idioterne, dirigido por Lars von Trier, também foi lançado no mesmo ano em Cannes, apesar de inicialmente não ter sido tão bem sucedido quanto seu predecessor.
O cineasta franco-americano Jean-Marc Barr foi o primeiro não dinamarquês a dirigir um filme do movimento, com Lovers (1999), produzido na França. O longa Julien Donkey-Boy (1999), do popular diretor norte-americano Harmony Korine, também é considerado parte do Dogma 95. No total, 35 filmes lançados entre 1998 e 2005 constituem a lista completa do movimento.
Principais características estéticas
Influenciado por movimentos anteriores, como o Neorrealismo e a Nouvelle Vague, o coletivo Dogma 95 surgiu com o objetivo de “purificar” o fazer cinematográfico. Enquanto os italianos e franceses buscavam uma maior liberdade criativa, os dinamarqueses acreditavam que a única forma de devolver ao cinema sua autenticidade era impor regras rígidas de produção, abrindo mão de recursos caros ou de efeitos especiais, assim como de truques técnicos de câmera ou pós-produção. Os diretores deveriam se concentrar na história e na performance dos atores. O movimento foi considerado um marco mundial na produção cinematográfica de baixo orçamento.
Os cineastas envolvidos acreditavam que uma abordagem livre de artifícios seria capaz de prender o espectador de forma mais profunda, já que o público não seria alienado ou distraído por elementos superficiais, tão comuns em blockbusters. Para fundamentar essa filosofia, Lars von Trier e Thomas Vinterberg criaram dez regras dentro das quais qualquer filme que quisesse fazer parte do movimento deveria se encaixar. O documento, muito claro e específico em suas exigências, era uma forma de estimular os cineastas do grupo a manterem os princípios do Dogma 95 em suas produções.
O Voto de Castidade*
Eu juro manter as seguintes regras, criadas e confirmadas pelo Dogma 95:
- As filmagens devem ser feitas em locações, não em estúdios. Objetos e acessórios não devem ser levados para o local (se algum objeto específico é necessário para a história, a locação deve ser escolhida de modo que já contenha tal objeto).
- O som nunca deve ser produzido separadamente das imagens, ou vice-versa (trilhas musicais não podem ser usadas, a menos que a música esteja tocando no local onde a cena é gravada).
- O filme deve ser gravado com a câmera na mão. Qualquer movimento ou sensação de imobilidade obtidos manualmente são permitidos.
- O filme deve ser em cores. Iluminação especial não é aceitável (se há pouca luz, a cena deve ser cortada ou uma única lâmpada pode ser anexada à câmera).
- Trabalhos ópticos e filtros são proibidos.
- O filme não deve conter ações superficiais (assassinatos, armas, etc., não podem ser incluídos).
- Alienações temporais e geográficas não são permitidas (ou seja, o filme deve acontecer aqui e agora).
- Filmes de gênero não são aceitos.
- O formato do filme deve ser de 35 mm.
- O diretor não pode ser creditado.
Além disso, eu juro como diretor me abster de gostos pessoais. Não sou mais um artista. Juro me abster de criar uma “obra”, já que considero o instante mais importante do que o todo. Meu objetivo supremo é obrigar a verdade a sair de meus personagens e locações. Juro fazer isso de todas as formas possíveis e a custo de quaisquer considerações estéticas ou relativas ao bom gosto.
Assim, faço meu VOTO DE CASTIDADE. (Copenhagen, segunda-feira, 13 de março de 1995. Em nome do DOGMA 95. Lars von Trier | Thomas Vinterberg) – * tradução livre
Se uma obra fosse aceita como parte do Dogma 95, o certificado do manifesto era inserido em sua sequência inicial, assim como o número do filme dentro do movimento. A ideia era reforçar a coletividade e a liberdade criativa, ainda que as imagens granuladas desses filmes e a câmera em constante movimento muitas vezes criassem uma sensação de incômodo e desorientação no público. Para os cineastas do grupo, o debate e a polêmica eram vistos como reações positivas à sua arte, já que atraíram a atenção do mundo para o movimento.
Embora as regras do Dogma fossem bastante específicas, elas acabaram sendo quebradas ou dribladas por alguns cineastas do movimento. Exemplo disso foi o próprio Vinterberg, que confessou ter coberto a luz de uma janela em uma cena de Festa de Família, rompendo com o voto de não inserir objetos alheios ao set e de não usar nenhum tipo de iluminação especial nas filmagens.
Von Trier também desobedeceu aos próprios “mandamentos”, já que usou música de fundo no filme Os Idiotas. Com esses pequenos rompimentos das regras, a partir de 2002 um cineasta não precisava mais ter sua obra verificada pelo conselho original do Dogma 95 para identificar seu filme como parte do movimento. Os próprios fundadores começaram a trabalhar em novos projetos experimentais e acabaram se tornando um pouco reticentes quanto à interpretação externa do Manifesto como um estigma ou gênero.
Sem dúvida, as estritas normas do movimento dividiram opiniões, mas os filmes produzidos durante o período também trouxeram uma nova forma de fazer cinema, extremamente provocadora e livre de grandes orçamentos ou aparatos técnicos. Para os criadores do Dogma 95, ter total liberdade de criação poderia ser uma faca de dois gumes, prendendo a criatividade sob a ilusão de possibilidades ilimitadas. Nesse sentido, colocar a criatividade dentro de uma caixa, metaforicamente falando, seria uma forma de obrigar os artistas a encontrarem formas de se libertarem.
Legado para o cinema
“Acredito que o Dogma foi inspirador para muitas pessoas e, de certa forma, iniciou um movimento digital. Pessoalmente, achei muito estimulante e fantástico fazer filmes dentro do Dogma, mas me senti completo com Festa de Família. Creio que esse foi o fim da linha do Dogma para mim. Foi o mais longe que eu poderia ir”, afirmou Thomas Vinterberg.
Apesar de controverso em alguns sentidos, o Dogma 95 certamente influenciou outros movimentos culturais, em especial os filmes Mumblecore (subgênero do cinema independente que despontou a partir de 2002, caracterizado por atuações naturalistas e diálogos improvisados, com foco nos relacionamentos de personagens na faixa de 20 a 30 anos e produção de baixo orçamento). Já na literatura, inspirou os New Puritans ou Novos Puritanos (movimento atribuído aos participantes de uma antologia de contos chamada All Hail the New Puritans, de 2000, um projeto que se destacou por seu minimalismo e autenticidade).
O longa experimental Hotel (2001), dirigido por Mike Figgis, faz diversas menções ao estilo do produção do Dogma 95 e foi descrito como “um filme Dogma dentro de um filme”. Esse estilo também é mencionado no episódio Hino Nacional / The National Anthem, na primeira temporada da série Black Mirror. Outro exemplo de artista inspirado pelo movimento é o músico e produtor musical Money Mark (Mark Ramos Nishita), que usou princípios do Dogma 95 em seu álbum Mark’s Keyboard Repair.
Com o passar dos anos, diretores associados ao Dogma 95 começaram a se afastar da fórmula tradicional do movimento, criando seus próprios métodos para realizar filmes artísticos de baixo orçamento. Além disso, com a qualidade e acessibilidade dos formatos digitais de vídeo, a película de 35mm acabou se tornando, nos dias de hoje, quase um luxo para cineastas independentes.
Em 2015, o Museum of Arts and Design (MAD), em Nova York, homenageou o movimento com a retrospectiva Director Must Not Be Credited: 20 Years of Dogma 95 (em tradução livre, O Diretor Não Deve Ser Creditado: 20 Anos do Dogma 95).
Dogma Feijoada
Tomando como base o Dogma 95, um grupo de cineastas negros – em especial, paulistas – resolveu criar seu próprio movimento, intitulado Dogma Feijoada. Esse manifesto apareceu pela primeira vez em 2000, no 11º Festival Internacional de Curtas-Metragens de São Paulo. Seu propósito era colocar em foco o trabalho dos cineastas negros brasileiros.
De acordo com Lucilene Pizoquero, pesquisadora do Cinema Brasileiro e professora da Academia Internacional de Cinema, a denominação Dogma Feijoada surgiu com um tom provocador e jocoso. “No melhor sentido tropicalista, o movimento procurava canibalizar o Dogma europeu. Se este primava pela austeridade e sisudez, aquele remetia à maleabilidade e plasticidade, significando a própria inversão de qualquer sistema rígido. Afinal, nada menos dogmático do que a feijoada, considerada um prato típico da culinária brasileira, que amalgama ingredientes de diferentes tradições culturais”, explica Lucilene. Essa ambiguidade saltava aos olhos e, de modo travesso, contribuiu para divulgar o movimento.
O manifesto Dogma Feijoada, escrito pelo cineasta Jeferson De, indicava sete fundamentos para o cinema negro:
- O filme tem de ser dirigido por realizador negro brasileiro;
- O protagonista deve ser negro;
- A temática do filme tem de estar relacionada com a cultura negra brasileira;
- O filme tem de ter um cronograma exequível. Filmes-urgentes;
- Personagens estereotipados negros (ou não) estão proibidos;
- O roteiro deverá privilegiar o negro comum brasileiro;
- Super-heróis ou bandidos deverão ser evitados.
Faziam parte do movimento Dogma Feijoada, além do idealizador Jeferson De, Lilian Solá Santiago, Ari Cândido, Billy Castilho, Daniel Santiago, Luiz Paulo Lima, Noel Carvalho e Rogério Moura.
Lista completa de filmes e cineastas
- Dogma # 1: Festa de Família / Festen (1998)
Direção: Thomas Vinterberg
Dinamarca -
Dogma # 2: Os Idiotas / Idioterne (1998)
Direção: Lars von Trier
Dinamarca - Dogma # 3: Mifune / Mifunes Sidste Sang (1999)
Direção: Søren Kragh-Jacobsen
Dinamarca - Dogma # 4: O Rei Está Vivo / The King Is Alive (2000)
Direção: Kristian Levring
Dinamarca - Dogma # 5: Lovers (1999)
Direção: Jean-Marc Barr
França - Dogma # 6: Julien Donkey-Boy (1999)
Direção: Harmony Korine
Estados Unidos - Dogma # 7: Interview (2000)
Direção: Daniel H. Byun (também creditado como Hyuk Byun)
Coreia do Sul - Dogma # 8: Fuckland (2000)
Direção: Jose Luis Marques
Argentina -
Dogma # 9: Babylon (2001)
Direção: Vladan Zdravkovic
Suécia - Dogma # 10: Chetzemoka’s Curse (2001)
Direção: Rick Schmidt, Maya Berthoud
Estados Unidos - Dogma # 11: Diapason (2001)
Direção: Antonio Domenici
Itália - Dogma # 12: Italiano Para Principiantes / Italiensk For Begyndere (2000)
Direção: Lone Scherfig
Dinamarca - Dogma # 13: Amerikana (2001)
Direção: James Merendino
Estados Unidos - Dogma # 14: Joy Ride (2000)
Direção: Martin Rengel
Suíça - Dogma # 15: Camera (2000)
Direção: Richard Martini
Estados Unidos - Dogma # 16: Bad Actors (2000)
Direção: Shaun Monson
Estados Unidos -
Dogma # 17: Reunion ou American Reunion (2001)
Direção: Leif Tilden, Mark Poggi
Estados Unidos - Dogma # 18: Verdadeiramente Humano / Et Rigtigt Menneske (2001)
Script and Direção: Åke Sandgren
Dinamarca - Dogma # 19: Cabin Fever / Når Nettene Blir Lange (2000)
Direção: Mona J. Hoel
Noruega - Dogma # 20: Strass (2001)
Direção: Vincent Lannoo
Bélgica - Dogma # 21: Kira’s Reason / En kærlighedshistorie (2001)
Direção: Ole Christian Madsen
Dinamarca - Dogma # 22: Era Outra Vez (2000)
Direção: Juan Pinzás
Espanha - Dogma #23: Resin (2001)
Direção: Vladimir Gyorski
Estados Unidos - Dogma #24: Security, Colorado (2001)
Direção: Andrew Gillis
Estados Unidos -
Dogma #25: Converging With Angels (2002)
Direção: Michael Sorenson
Dinamarca, Estados Unidos - Dogma #26: The Sparkle Room (2001)
Direção: Alex McAulay
Estados Unidos - Dogma #27: Come Now (2001)
Direção: Desconhecido
Estados Unidos - Dogma #28: Corações Livres / Elsker Dig For Evigt (2002)
Direção: Susanne Bier
Dinamarca - Dogma #29: The Breadbasket (2002)
Direção: Matthew Biancaniello
Estados Unidos - Dogma #30: Días de Boda (2002)
Direção: Juan Pinzás
Espanha - Dogma #31: El Desenlace (2005)
Direção: Juan Pinzás
Espanha - Dogma #32: Old, New, Borrowed and Blue / Se til venstre, der er en Svensker (2003)
Direção: Natasha Arthy
Dinamarca - Dogma #33: Residencia (2004)
Direção: Artemio Espinosa
Chile -
Dogma # 34: Em Suas Mãos / Forbrydelser (2004)
Direção: Annette K. Olesen
Dinamarca - Dogma #35: Così x Caso (2004)
Direção: Cristiano Ceriello
Itália
(Fonte: http://www.Dogma95.dk/)
*Texto e pesquisa: Katia Kreutz
**Foto Destaque: Os Idiotas de Lars von Trier