A diversidade no cinema é uma questão que dá margem para discussões profundas. Ela passa pela representatividade de diferentes grupos sociais nas telas, criando, atuando e assistindo a tramas que apresentem ideias que dialogam com sua realidade, não visões preconcebidas e estereotipadas.
É curioso notar que o audiovisual, principalmente pelas grandes produções que atingem milhões de espectadores ao redor do mundo, tem o poder de criar padrões de comportamento. Assim, ao não incluir esses grupos de indivíduos nas obras, ele atua, mesmo que não intencionalmente, para invisibilizá-los, o que lhes tira a liberdade de expressão.
Indo além nessa discussão, a diversidade também é uma questão trabalhista. Quando o mercado cinematográfico não emprega pessoas negras, LGBT e mulheres para cargos proeminentes em produções, ele contribui para que esses profissionais desistam da profissão.
No artigo de hoje, vamos discutir a importância da diversidade no cinema, e nosso objetivo é aprofundar essa discussão tanto quanto possível. Continue a leitura e saiba o que é esse conceito, por que discuti-lo, quais são suas pautas e como seria um cinema mais inclusivo.
O que é considerado diversidade no cinema?
Inicialmente utilizado para se referir às pessoas com deficiências (PcD), o termo “diversidade” tem sido aplicado em outros contextos, nos últimos anos. Ele passou a englobar também a visibilidade de indivíduos cujo acesso a determinados bens e serviços é limitado por causa da cor de sua pele, do seu gênero ou da sua orientação sexual.
É preciso levar em consideração que essas pessoas quase sempre são cerceadas do seu acesso à cultura. Mais que isso, elas não têm condições de arcar com os estudos na área que escolheram trabalhar, devido à sua situação de fragilidade socioeconômica.
Visto que na maior parte dos casos isso acontece com esses indivíduos desde muito novos, não seria correto falar de “igualdade” de oportunidades, e os movimentos sociais que lutam pela diversidade preferem utilizar a palavra “equidade”.
Essa substituição vocabular tem um motivo: não é possível promover igualdade em um contexto em que as pessoas partem de condições desiguais. Logo, é dever da indústria e dos grupos de trabalho de cinema oferecer condições diferentes para cada indivíduo, de modo a equilibrar as oportunidades.
Mais especificamente quanto às diferentes facetas das lutas pela diversidade, há várias áreas de abordagem, que são também os temas das lutas dos diferentes movimentos sociais:
- diversidade étnica — no Brasil, a maior parte da população é composta por negros, no entanto, esse número não está refletido proporcionalmente no mercado de trabalho e nos cargos de liderança ocupados;
- diversidade de gênero — mulheres, mesmo as cis sexuais, recebem salários menores que os homens no cinema, a exemplo do que acontece em outros campos da sociedade, enquanto homens e mulheres transsexuais sofrem com o desemprego e o preconceito;
- diversidade sexual — gays, lésbicas e bissexuais atuam em diferentes ramos do cinema, mas são muito modestamente representados nos filmes, havendo poucos ou nenhum personagem que apresente suas vivências ou questões nos roteiros.
Quando prêmios como o Oscar deixam de ser inclusivos, o que observamos não é uma atitude isolada, mas a ponta de um iceberg. Os grupos sociais vulneráveis não conseguem assistir filmes, nem estudar cinema. Se conseguem superar tudo isso, também vão ter dificuldades para inscrever seus filmes em festivais.
Qual é a importância da diversidade no cinema?
A falta de diversidade não é um problema restrito à indústria cinematográfica ou do entretenimento. Trata-se do reflexo de estruturas de preconceito que permeiam toda a sociedade. Logo, debater o tema vai bem além de questões artísticas, transformando-se em um ato político.
Salários desiguais, falta de oportunidades, o abuso ou assédio sofrido por mulheres e pessoas transsexuais no mercado de trabalho são fruto de um preconceito estrutural que, como era de se esperar, é assimilado e reproduzido no mercado de cinema.
Esse preconceito permeia a criação de vídeos publicitários, grandes produções hollywoodianas e filmes independentes. Até mesmo entre youtubers as oportunidades são desiguais.
Então, discutir o tema é importante para criar conscientização e mobilização para a mudança desse quadro. É fundamental lembrar que os preconceitos sociais estruturais são muito mais difíceis de combater que as ações individuais.
Se forem representados no roteiro de filmes e discutidos nos bastidores, esses problemas vão evoluir também em quem hoje não tem a menor ideia do que significam: boa parte do público consumidor do cinema dito “comercial”.
E, de novo: a inclusão envolve não apenas o acesso de pessoas aos conteúdos cinematográficos, mas também a participação em atuações e produções de filmes, de preferência em cargos importantes e proeminentes.
Quais são os desafios no contexto atual?
As pautas sociais da diversidade já passaram por um desenvolvimento histórico. Algumas delas encontram-se mais desenvolvidas em determinados pontos, enquanto outras só hoje começam a conquistar o espaço que merecem.
Sua aceitação também varia de país para país, de modo, por exemplo, que o cinema brasileiro já denuncia o racismo há mais de 50 anos, mas é um dos menos avançados em outros campos, como o feminismo.
Vale a pena examinar mais a fundo que questões estão contidas em cada tipo de movimento e como eles todos se relacionam. Afinal, o diálogo entre todas essas lutas é fruto da necessidade mútua, mas suas reivindicações são também bem diversas.
O movimento feminista
Como dissemos no início deste artigo, o cinema, pela sua capacidade de retratar situações sociais, pode atuar como um grande criador de estereótipos e padrões de comportamento. Não à toa, uma das grandes questões do feminismo no cinema é a maneira pela qual a mulher é retratada nas produções, nos moldes do Teste de Bechdel.
Mas o problema vai além. Embora a indústria cinematográfica venha empregando cada vez mais mulheres, seu papel ainda é reduzido a cargos menos expressivos nos sets de filmagem. Assim, por exemplo, o número de roteiristas e diretoras é muito menor que o de homens que ocupam os mesmos cargos hoje.
Da mesma forma, embora haja inúmeras personagens femininas nas obras, elas poucas vezes são escolhidas como protagonistas. Pare e pense nos seus filmes favoritos, quantos deles têm mulheres no papel principal?
Na verdade, as duas questões estão relacionadas, já que para que a figura feminina possa ser representada no cinema de forma profunda e não estereotipada, nada melhor que ela mesma escrever, dirigir e interpretar esses papéis.
Historicamente, a mulher sofre também com o assédio e, em alguns casos mais graves, com a violência no ambiente de trabalho — e o cinema não está imune a esses casos.
Acontecimentos estarrecedores como o estupro da atriz Maria Schneider, arquitetado durante as filmagens por Marlon Brando e Bernardo Bertolucci no filme O Último Tango em Paris (1972), demonstram bem como essa violência pode ser naturalizada e ficar impune.
Uma das últimas cenas do longa é uma cena de sexo entre Brando e Schneider, que foi realizada de maneira ultrarrealista sem que a atriz tivesse sido consultada a esse respeito. À época, ela contava apenas 19 anos.
As questões LGBTQI+
Enquanto as mulheres aparecem nos filmes, mas não em papéis predominantes, gays, lésbicas, bissexuais, pessoas transgênero e não-binárias enfrentam, em alguns casos, situações de completa invisibilidade.
Dados de 2018 da GLAAD (Gay & Lesbic Alliance Against Defamation ou Aliança de Gays e Lésbicas Contra a Difamação) dão conta de que, no ano de 2018, apenas 20 dos 110 filmes distribuídos pelos estúdios americanos davam espaço a personagens LGBT em seus roteiros. Modestos 12% do total.
Com relação aos personagens transgênero (que engloba travestis, transsexuais, cross dressers, drag queens e outras categorias não-binárias), os dados são ainda mais desanimadores. Absolutamente nenhum personagem trans apareceu nos filmes, naquele ano.
A presença de gays, lésbicas e pessoas trans em obras comerciais é um termômetro importante para medir o avanço das questões LGBTQI+ no cinema e na sociedade. Ela permite que a vida, os gostos pessoais e o comportamento dessas pessoas sejam naturalizados, e os indivíduos melhor aceitos por parcelas mais conservadoras da sociedade.
Além disso, questões de gênero são bandeiras não apenas artísticas e sociais, mas também políticas e judiciais. A população LGBT, especialmente as pessoas trans, sofrem com a violência nas ruas, e há dados que comprovam que o número de assassinatos entre esses grupos de indivíduos é muito maior que entre outras organizações sociais.
O movimento negro
Antes de falar do racismo estrutural no cinema mundial, vamos observar o caso do Brasil. Se, por um lado, uma parte do cinema nacional se apropriou e reforçou o mito da democracia racial — falso pressuposto de que as raças convivem harmonicamente no país, em parte devido à miscigenação da nossa população — ele também teve notada atuação histórica a favor do povo negro.
As temáticas da escravidão, marginalização, aglomeração em favelas e invisibilidade nos meios de comunicação contrastou com algumas ótimas contribuições de diretores brasileiros, como fez Anselmo Duarte ao adaptar a obra O Pagador de Promessas, de Dias Gomes, para o cinema, em 1962.
Seja como for, Anselmo era um diretor branco falando sobre a temática negra, e a participação dos negros nas nossas obras como atores ou realizadores é muito reduzida, número que chama ainda mais atenção quando consideramos que eles são a maioria da população do país (55%).
Em estudo de 2016, a ANCINE publicou um documento da Coordenação de Monitoramento de Cinema demonstrando que, naquele ano, nada menos que 97% dos filmes brasileiros foram dirigidos por pessoas brancas.
As mulheres que respondiam pela direção atingiam 19,7% do total, a maior parte delas no comando de documentários. Embora o estudo não revele tal número, vale a pena refletir sobre o quão ínfima foi a representatividade da mulher negra no cinema daquele ano.
A população negra brasileira, historicamente mais pobre em decorrência da sua exploração durante e depois dos séculos de escravidão, tem poucas condições de estudar cinema. Para a maior parte dessas pessoas, é melhor apostar em profissões com investimento mais baixo e retorno mais rápido.
De que forma é possível um cinema crítico e inclusivo?
Se o cinema conseguir abrir espaço para produções mais inclusivas e diversas, as consequências vão ser muito positivas: obras mais críticas e que promovem um pensamento social mais agudo, como se espera do cinema e de todas as artes.
No entanto, contemplar a diversidade é muito mais do que afinar o discurso com seus argumentos. É necessário criar situações reais para que os grupos vulneráveis se sintam amparados e incentivados a estudar e praticar cinema.
Essas situações dependem de políticas públicas e privadas para garantir acesso e diversidades. Em outras palavras, inclusão e diversidade devem ser políticas de Estado que atraiam, cooptem e incentivem atuações individuais nessas causas.
Um grande passo tem sido dado com a criação de festivais e prêmios nacionais e internacionais voltados a temáticas específicas, como acontece com o FanCineGay e o ForRainbow, por exemplo. Mostras e premiações do cinema negro vão na mesma linha: o Fórum Itinerante de Cinema Negro (FICINE) é um exemplo.
Podemos citar, também, o FEMINA (Festival Internacional de Cinema Feminino) e o FIMCINE (Festival de Mulheres no Cinema) como grandes defensores do fim do machismo estrutural na indústria cinematográfica e o apoio às profissionais independentes.
No entanto, esses incentivos ainda são desconhecidos do grande público, além de contarem com orçamentos modestos. Uma cadeia produtiva forte e livre de preconceitos nas diversas áreas cinematográficas se constrói não apenas com festivais, mas com incentivos em todos os seus elos.
Escolas, cursos de formação em cinema, faculdades, agências publicitárias e produtoras precisam de ações conjuntas e organizadas nesse sentido. Quando isso acontecer, teremos os alicerces de uma estrutura significativamente forte para promover a arte de todos, sem invisibilidade, preconceitos ou estereótipos.
Na Academia Internacional de Cinema, realizamos um processo seletivo anual, em que selecionamos várias pessoas para estudarem cinema com bolsas integrais e parciais. Já chegamos ao número de 600 inscritos.
Com isso, os dramas e situações vividas pelas mulheres, negras e negros, LGBTs e outros grupos vulneráveis social e economicamente vão ser divulgados, examinados, comentados e discutidos em campos da nossa sociedade em que isso não ocorre hoje.
E o cinema — arte política por excelência, mesmo quando falamos dos circuitos comerciais —, vai cumprir sua função de ampliar os horizontes de pensamento do público, promovendo diversidade e entretenimento mais edificante e político. A arte sendo utilizada no seu sentido pleno.
E já que falamos sobre as produções nacionais em diversos pontos deste artigo, que tal baixar nosso material sobre o cinema brasileiro? Nele, explicamos as correntes mais importantes e falamos sobre diferentes diretores, atores e produções!