Dia do Orgulho LGBTQIAP+: artista e professor da AIC compartilha sua trajetória no audiovisual
- “Ser um corpo trans no Brasil, sobreviver aos 35 anos e viver de arte é um ato radical, insurgente, poético e profundamente transformador. É claro que temos orgulho disso. Você não teria?”.
A fala é de Daniel Veiga, roteirista, dramaturgo, ator e professor da Academia Internacional de Cinema (AIC) no Curso Técnico – Filmworks,
Nesta Dia do Orgulho LGBTQIAP+ entrevistamos Daniel Veiga, um artista que conquistou seu espaço no mercado audiovisual brasileiro. Sua jornada no audiovisual começou na adolescência no teatro da escola, mas foi só em 2009 que ele decidiu abrir mão da carreira corporativa e se dedicar exclusivamente às artes.
Daniel tem participação na sala de desenvolvimento de sitcom pela produtora Floresta, na sala Narrativas Negras pela Paramount e no Colaboratório Criativo, uma iniciativa da AFAR Ventures em parceria com a NETFLIX.
Como ator já acumulou mais de 20 anos de experiência e foi premiado com o KIKITO (Festival de Cinema de Gramado), o Araibu (Festival de Cinema do Vale do Jaguaribe) e o Troféu Vento Norte. Além de participações nos seriados 3% do Netflix e LOV3 da Amazon.
Também é um dos dos cofundadores do CATS – Coletivo de Artistas Transmasculines, que busca promover representatividade e empregabilidade de artistas transmasculines em várias formas de expressão.
Como você sente que o mercado audiovisual trata corpos trans?
Eu vejo que cada vez o tema acerca do gênero e as narrativas trans têm ganhado espaço, sobretudo na ficção. Também acredito que, em termos de ficção, essas narrativas estão começando a evoluir e ficar mais naturais e fluídas.
Mas esse movimento ainda acontece de forma muito lenta, sempre graças ao tremendo trabalho que nós, artistas trans, temos empenhado. Ainda enfrentamos muitos conflitos e falácias, como as acusações de que somos censores ou as produções que insistem em sequestrar nossas narrativas nos ignorando no processo de feitura da obra.
Há uma grande resistência e sinto que ainda não conseguimos fazer com que as pessoas cisgêneras entendam que nossa pauta e nossas demandas são, não só artísticas, mas também políticas e econômicas.
É possível ver esse mesmo movimento nas contratações de profissionais para compor as equipes?
Ainda são pouquíssimos os profissionais trans circulando nesses espaços, menos ainda nos lugares de tomadas de decisão. E isso porque eu estou falando de São Paulo, que é onde a coisa acontece. Em pleno 2023 o Brasil tem apenas 1 roteirista chefe de sala trans e eu posso contar nos dedos quantos roteiristas homens trans somos.
Se falarmos de interseccionalidades como transgeneridade e raça, as estatísticas são ainda mais terrível. E isso não significa que esses artistas não existam. Esses artistas simplesmente são ignorados. Sem contar os potenciais talentos que sequer chegam a ser descobertos por conta de toda violência envolvendo vidas trans.
Somos uma população cuja adolescência, em grande parte, é expulsa de casa aos 14 anos. Somos uma população com 82% de evasão escolar antes do Ensino Médio. Nossa expectativa de vida permanece em 35 anos e o Brasil ainda lidera o ranking de assassinatos de pessoas trans. Como considero a arte pedagógica e o entretenimento revolucionário, é urgente que a cisgeneridade assuma sua parcela de responsabilidade nesta cadeia cruel e se alie à transgeneridade, trazendo cada vez mais artistas trans para trabalhar consigo e contar suas histórias por meio de seus próprios corpos com trabalho, cachê, prêmios, reconhecimento e por aí vai. Somente assumindo o protagonismo de nossas narrativas, mostraremos ao mundo quem somos de verdade – e de mentira.
Como é a sua visão com relação a atores cis interpretarem uma personagem trans?
Quando vejo um artista cis, por exemplo, abrir mão de um papel trans e evitar a prática do transfake – quando um ator cis faz um personagem trans – é muito mais para evitar um potencial cancelamento do que por consciência do real significado do quão prejudicial esta prática é, não só para artistas trans, mas também para o público trans do outro lado da tela. Além disso, garantir que atores e atrizes trans representem personagens trans é apenas uma parte pequena da luta. A luta é para que artistas trans estejam em TODOS os lugares, incluindo os de criação, os de tomadas de decisão a até fazendo aqueles papeis cuja natureza do gênero não importe (eu mesmo só tenho atuado personagens em que não importa se são homens cis ou homens trans). Precisamos ocupar, portanto, os lugares de roteiristas, diretores, fotógrafos, produtores executivos, etc.
Como é estar em sala de aula como professor?
Certamente eu tenho o olhar mais aguçado e treinado para entender as demandas e discussões de alunos trans, porque essa é minha vivência, este é o meu corpo. E também discuto com propriedade a produção audiovisual que tem a população LGBTQIAP+ – sobretudo a trans – como tema e/ou como realizadora, não por ser trans, mas porque esse é meu campo de estudo já há alguns anos. A questão é: sou completamente apaixonado por dar aula porque eu acredito de verdade na troca. Me considero menos professor e mais um artista com certa experiência que gosta de trocar com outros artistas com certa experiência. Não é mentira nem demagogia quando declaro que eu sempre aprendo quando ensino. Estou à frente de salas de aulas desde 2019 e sempre fui muito respeitado. Além disso eu amo o que eu faço e acho que isso fica à vista de todo mundo.
Você considera importante pessoas trans compartilharem sobre suas realidades para ampliar esse diálogo ou é uma característica particular sua e que tem relação com seu trabalho artístico?
Eu sou uma pessoa do diálogo, antes de tudo. Se não fosse, não daria aula, ainda mais de dramaturgia. Entendendo que cada um tem seu tempo e contanto que sua vida não esteja em risco, acho importantíssimo que artistas trans assumam e reforcem sua identidade e posição política sempre que puderem. Mais que isso, acho estratégico.
Cada artista que assume que é trans é mais uma pessoa trans vista nas telas no dia a dia. Hoje em dia, você chega do trabalho, vai preparar a janta enquanto deixa rolar a novela das sete e BAM! Tem um corpo trans e preto lindo e talentoso lá [em referência a Alan Oliveira na novela Vai Na Fé!]. Você bota um filme ou uma série no Streaming e tem uma história sexy e envolvente, um suspense porreta, uma comédia romântica ou um terror de dar medo e são todos protagonizados por corpos trans de verdade, feitos por artistas assumidamente trans.
E assim, nossos corpos vão ficando naturalizados entre Kikitos e Óscars, entre blockbusters e filmes de arte. E nós, cada vez mais orgulhosos de dizer quem somos porque, sim, isso é motivo de orgulho.