Colóquio Ruidoso I – Michael Wahrmann e Cristiano Burlan
Uma conversa bombástica. Um bate-papo filosófico. Um debate repleto de conteúdo, acidez, reflexão e porque não, diversão. Essa é a primeira edição do Colóquio Ruidoso, nova série de matérias que a Academia Internacional de Cinema (AIC) preparou para você.
O Debate
Nesta primeira edição temos os diretores e professores da AIC, Michael Wahrmann (diretor do premiado “Avanti Popolo”) e Cristiano Burlan (vencedor do É Tudo Verdade 2013 com “Mataram Meu Irmão”). O assunto? Cinema Arte.
Aprecie o debate e no final, de a sua opinião!
Mônica_ A Jornalista: Pessoal, pra começar toda essa discussão, quero botar em xeque uma citação do Nietzsche, do livro “Humano, Demasiado Humano” …
“A arte deve antes de tudo e primeiramente embelezar a vida, portanto, fazer com que nós próprios nos tornemos suportáveis e, se possível, agradáveis uns aos outros: com essa tarefa em vista, ela nos modera e nos refreia, cria formas de trato, impõe aos indivíduos leis do decoro, do asseio, de cortesia, de falar e calar no momento oportuno. A arte deve, além disso, ocultar ou reinterpretar tudo o que é feio, aquele lado penoso, apavorante, repugnante (…).
Michael Wahrmann: Eu não faço a mínima ideia do que o Nietzsche está falando. E você, Cris?
Cristiano Burlan: Eu também não Misha! Rsrs!!!
M. W.: É Mônica. A gente é cineasta. Não entendemos muito dessas coisa ai de arte. Quer provocar de novo? Ou explicar pra gente esse parágrafo?
Mônica: Mas cinema não é arte? Vocês concordam com a definição que Nietzsche dá para a arte, que tem de ser bela, esconder o que é feio, repugnante etc.?
M. W.: Eu me sinto um pouco desconfortável em discutir quem tem e quem não tem que fazer arte. Eu faço cinema. Pode chamar de arte, pode chamar do que quiser. A questão é que eu, como cineasta, não chamo nada de nada. Não defino o papel da arte de forma teórica. Tem gente que faz arte para esconder, tem outros que fazem para mostrar. Tem uns que acham que o belo é feio e outros que o feio é belo. Enfim… Nós como cineastas temos que fazer filmes. Não discutir se o que fazemos é arte ou não, e se é bela ou não. Pra isso existem os teóricos, intelectuais, críticos, filósofos e jornalistas. Cineasta faz filme.
C. B.: Que perguntas capciosas, Mônica! Rs. Me interesso muito pouco por discutir o que é arte e o que não é, o que é belo e o que é feio. Realmente não trabalho bem com essa raça que chamam de artistas. Sou um trabalhador de cinema, não tenho tanto tempo para afetações, tampouco para tentar embelezar algo. Não se faz filmes impunemente, se paga um preço muito alto. Tentamos encontrar o tempo todo função e utilidade para aquilo a que chamamos arte, retiramos, com isso, a sua potência e a sua força em ser inútil e não estar a serviço de nada, nem de ninguém. A arte não serve a nada, não tem função. Reside ai uma problemática, em tempos em que o argumento e a justificativa surgem antes da própria obra, a arte surge já tentando ser útil e necessária. Temos pouco espaço para uma produção espontânea.
M. W.: E nesse sentido a dificuldade ainda é maior no caso do cinema. Pois ao contrário da literatura, pintura, etc., o cinema exige um investimento maior pois tem equipe, técnicos, estrutura (seja enxuta ou não). E ai voltando a questão do Cristiano, de que não conseguimos justificar nossas obras, nem achar nelas um sentido maior. Além disso não conseguimos justificar seu preço. Por que investir um dinheiro em alguma coisa sem sentido? Alguma coisa inútil? Um quadro pode embelezar uma sala, um livro pode ser lido na internet quase a custo zero. E um filme? E ai talvez a saída seja na busca pelo cinema pessoal, íntimo, que exige um mínimo de investimento (mesmo assim maior que qualquer outra arte), e se justifica, pelo menos, no egoísmo e egocentrismo do realizador. Toda arte se justifica como tal, claro, mas o cinema que trabalha o pessoal, essa justificativa esta explicita. É dada. Clara, honesta. Eu faço filmes sobre mim, porque eu quero e é o que me interessa nesse mundo. E claro, a outra saída é o cinema comercial. E ai a justificativa está no produto. Eu faço um filme porque ele vai gerar lucro. Porque ele é uma indústria. Que não é o nosso caso. Ao contrário. A gente só fica mais pobre a cada filme que a gente faz. Então porque a gente os faz?
C. B.: Sempre me pergunto por que fazer filmes. Acredito que o ato de fazê-los está próximo a um sacerdócio. Filmar é se desinteressar, em certa medida, uma certa renúncia à arte e à própria vida. Eu não posso falar de outra coisa senão do meu amor pelos filmes e da maneira como eu os realizo. Outros são motivados por tentações distintas a minha, mas não há como criticá-los, porque são apenas diferentes, são motivações diferentes. As decepções de uma vida compõem uma obra, as mentiras da vida também tecem a própria vida e a obra. Há muita crueldade nisso e há muita força para se realizar filmes a partir disso. Mas não falo de uma sublimação freudiana e tampouco de resiliência. Mas que as minhas dores são detonadores para a criação. Nesse lugar entre o dia e à noite, entre o infinito e a finitude, entre a vida e a morte não existem só filmes, a vida lá fora talvez seja mais interessante e urgente.
M. W.: Eu fico feliz com a resposta do Cristiano. Pois ele me dá uma esperança de que tem gente com verdades e crenças sobre o cinema. Eu pessoalmente não faço a mínima ideia do porquê de fazer filmes. Para mim realmente não faz muito sentido. Antigamente talvez fez. Eu acreditava em algum poder sublime da arte, do cinema. Em alguma forma de expressão que realmente consiga conter todas essas angustias das quais Cristiano fala. Esse choque com a vida. Mas em um momento isso parou de fazer sentido para mim. Acho que o próprio fazer cinematográfico é uma mentira e uma autoilusão. A gente crê que esta expressando e abrindo uma autocatarse. Mas é mentira. Exibir essa angustia/dor/alma publicamente já a transforma em representação e a representação frente ao outro, não é verdadeira. É uma ilusão do que queremos que os outros pensem que somos através do que, supostamente sinceramente expressamos. E ai essa honestidade na nossa apresentação da dor vira um autoengano. E não sobra nada. Fica um filme que supostamente representa uma alma, mas que na verdade, representa o que nós gostaríamos que nossa alma represente frente ao outro.
Então todo esse processo se vira contra nós e nos mantém no mesmo lugar. Talvez ilusionados de que superamos ou encaramos alguma crueldade urgente. Me parece uma carência de autor tentando afirmar sua insegurança frente ao mundo. Como qualquer outra expressão carente. Como qualquer angústia subjetiva do indivíduo frente ao mundo. E não mais a angustia totalizadora frente ao sistema. E é ai que esquecemos Baudelaire. E ai fazer um filme ou não fazê-lo dá na mesma. Ou não, depende do grau da autoimportância e autoilusão que atribuímos a nós mesmos e a nossa obra. E ai volto e me pergunto. Se cinema de arte me deixa pobre, se ele não serve mais como uma expressão sincera de um sentimento genuíno, para que então? E continuo sem uma boa resposta. A única que consigo dar é porque tenho 35 anos e é tarde demais para mudar de profissão. Porque é a única coisa que sei fazer. (E olha lá.) E ai só sobra a metalinguagem. O fazer para falar do fazer para que alguém que saiba como, ou porque fazer, o faça melhor.
Ou talvez para continuar uma busca. Pois já que é tarde para mudar e parar, fico com a esperança de que algum dia em algum momento de todo esse processo, eu consiga entender porque eu faço filmes. E ai provavelmente vou parar de fazer filmes.
C. B.: Compreendo o seu niilismo, Misha, já fui muito assim também, meus amigos me chamavam de niilista, agnóstico, iconoclasta e corinthiano, o que me tornava uma pessoa muito descrente. Mas de uns tempos para cá, tenho pensado muito sobre por que fazer filmes e começo a perceber que talvez seja um ato de fé e uma certa curiosidade em questões mais primitivas. Acredito que os filmes deveriam ser feitos mais com o estômago do que com o intelecto. Me interesso muito mais pelos filmes do que pelo “cinema” e pelo que vem no pacote dele – festivais, prêmios, editais… Eu não faço cinema, eu faço filmes. E realmente me interesso muito pouco por aquela parte. Também não acredito que partindo de questões pessoais como matéria para se expressar através dos filmes possamos chegar em algum lugar. Se nem eu sei ao certo por que faço os filmes, porque deveria querer que outros defendam, assistam ou aceitem os meus filmes?
Obrigado Misha e Mônica, gostei muito do papo. Abraços, Cristiano.
M. W.: Aqui vai a minha última resposta. Foi ótimo sim. Acho que todo cineasta tem que ser um pouco niilista. É o que nos salva de virarmos Jesus na nossa própria imagem. Não acho que o cinema tem que salvar o mundo. Nem salvar a nós mesmos. Fazer filmes é uma profissão, não uma religião. Já o cinema, você tem razão, é mais religioso sim. Ele exige um ritual. Uma adoração. É para os crentes. (Por isso que eu só vejo filmes no Netflix).
E se você realmente não se interessa pelos editais/festivais/prêmios, além de Corinthiano está virando Franciscano. E fazer filmes com o estomago (vazio)…ai realmente, sua fé… que nos salva.
Mas eu concordo. Somos muito cínicos. Talvez por isso falamos coisas nas quais não acreditamos. Talvez por isso queremos que outros defendam, assistam e aceitem nossos filmes, sem nem, se quer, sabermos porquê. Ou será que é por causa da nossa fé? Pela esperança de converter todo mundo a nossa religião fílmica? Ou cinematográfica.
Não sei. Graças a deus, sou ateu. Abraços!
Mônica: Participe você também do colóquio, deixe sua opinião nos comentários.