O que é?
O cinema latino-americano, do qual fazemos parte, abrange os filmes produzidos nas regiões das Américas do Sul e Central cujos idiomas oficiais têm raízes latinas, como o espanhol e o português. Durante muitas décadas, após a popularização do cinema sonoro, quase 90% da produção total de filmes latino-americanos se concentrou somente em três países: Brasil, Argentina e México – que atualmente ainda lideram essa produção cinematográfica, com o ingresso recente de filmes produzidos em Cuba, Chile, Uruguai, Colômbia, Bolívia, Peru e Venezuela.
Para o cineasta mexicano Aarón Fernández, roteirista e professor da Academia Internacional de Cinema (AIC), seu país de origem possui uma das cinematografias mais ativas e criativas das Américas. “Embora os filmes mexicanos não tenham, hoje em dia, a mesma influência que tinham nos anos 1940 e 1950, quando eram vistos em quase todo o continente, e as atrizes e atores admirados por muita gente, sem dúvida é uma cinematografia que, por estar presente nos festivais internacionais de primeiro escalão, tem uma representatividade continental; mas acho que podemos falar isso igualmente dos filmes argentinos, chilenos e brasileiros.”
Para analisar o cinema latino-americano, no entanto, é preciso pensar não apenas em porte e volume de produção independente e crescimento exponencial, mas na organização em torno disso, questão que sempre foi um “calcanhar de Aquiles” para esses países. “Destacam-se exemplos como o de Cuba, com papel crucial no quadro geral, principalmente pela criação do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (ICAIC), que ajudou a financiar inúmeros projetos em toda a América Latina e ajudou a formar muitos profissionais. Outros expoentes e lideranças na revolução da sétima arte e da criação de um Cinema Novo foram o Brasil (mesmo com uma língua diferente do restante da América Latina, predominantemente espanhola), o Chile, a Argentina e o México”, explica o jornalista e crítico de cinema Filippo Pitanga, professor da AIC.
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A cinematografia latino-americana teve um desenvolvimento lento no que diz respeito à formação de um mercado, por conta do isolamento econômico entre os diferentes países. Por isso, a maior parte de sua produção depende dos espectadores de cada país e de seus mercados internos. Somente por volta dos anos 1960, com o levante dos cineastas revolucionários que contestavam os regimes militares, surgiu a noção de um “cinema latino-americano” como manifestação artística, com identidade própria, explorando os pontos em comum entre os países: o idioma, as temáticas e as propostas estéticas (que buscavam se diferenciar do cinema mainstream).
A indústria cinematográfica da Argentina, particularmente, foi uma das que mais se destacou na América Latina ao longo do século 20, devido ao apoio do governo e do trabalho de uma série de atores e diretores que obtiveram enorme prestígio, além de o país possuir uma maior percentagem de público consumidor dos produtos nacionais. Durante muito tempo, o cinema argentino foi um dos principais representantes dos países de idioma espanhol, tendo recebido a maior quantidade de premiações – incluindo 16 Prêmios Goya e dois Oscars, com A História Oficial / La historia oficial (1985) e O Segredo dos Seus Olhos / El secreto de sus ojos (2009).
Um pouco de história
A primeira exibição de cinema do mundo, realizada pelos irmãos Lumière em Paris, na França, aconteceu em 1895. Um ano depois, os equipamentos de filmagem e de projeção já haviam chegado à América Latina, demandando profissionais que pudessem trabalhar na produção de filmes. O fazer cinematográfico se disseminou ainda mais a partir do início do século 20, especialmente no Brasil, na Argentina e no México.
Na década de 1930, a luminosidade privilegiada dos países latinos e também suas paisagens, considerados exóticas, atraíram o interesse de diversos cineastas estrangeiros, entre eles Sergei Eisenstein – um dos maiores nomes do Cinema Soviético. Com investimentos do Fundo Mexicano de Cinema, Eisenstein filmou quase 50 horas de material bruto para o longa-metragem ¡Que Viva México!. O filme seria um retrato da cultura e da política do período anterior à colonização do país até a revolução mexicana; porém, diversos problemas fizeram com que o projeto fosse eventualmente abandonado.
Ainda nos anos 1930, surgiram as primeiras produtoras de cinema na América Latina, entre elas a MexicoFilms (uma empresa estatal) e a Pecusa – Películas Cubanas S.A. (de natureza privada). A ideia era mostrar as paisagens exuberantes e as lindas mulheres latinas, com o intuito de encantar os cineastas de outros países e atraí-los para filmarem nessas regiões.
Com a chegada do cinema sonoro, que se popularizou globalmente nas décadas de 1930 e 1940, os musicais também ganharam destaque. As trilhas dos filmes passaram a ser essenciais e contavam com músicas de compositores famosos, como Carlos Gardel, Agustín Lara, Pedro Vargas, Ernesto Lecuona, Benny Moré e Pérez Prado. Os musicais carnavalescos de Carmen Miranda também contribuíram para levar a cultura dos países tropicais, especialmente uma visão extravagante do Brasil, para os Estados Unidos e o resto do mundo.
Depois da Segunda Guerra Mundial, foi necessária uma nova configuração da cultura cinematográfica na América Latina. Ao mesmo tempo em que os filmes hollywoodianos se tornavam cada vez mais comuns nas salas de cinema dos países latinos, foram criados cineclubes para divulgar as inovações e os cinemas alternativos que estavam sendo produzidos em outros países (como o Neorrealismo Italiano e a Nouvelle Vague Francesa). Em geral, esses cineclubes eram frequentados por estudantes, críticos de cinema e amantes da sétima arte. As revistas especializadas também fizeram enorme sucesso nessa época.
A década de 1940 trouxe o auge do “cinema de lágrimas” na América Latina, focado em narrativas melodramáticas, e das comédias, como as rancheiras mexicanas (que se passavam no ambiente rural e tinham um discurso nacionalista) ou as chanchadas brasileiras (filmes de humor ingênuo, burlesco, que eram muito populares junto ao público). Esse período, que se estendeu até os anos 1950, marcou uma fase próspera do cinema nacional, devido ao sucesso de estúdios como a Vera Cruz, em São Paulo, e a Atlântida, no Rio de Janeiro. Outras empresas latino-americanas que prosperaram na época foram a Sono Filmes, na Argentina, e os Estúdios Churubusco, no México.
Embora os filmes norte-americanos tenham dominado as bilheterias do mundo inteiro durante boa parte da história do cinema, os estúdios latinos também possuíam infraestrutura grandiosa e competiam entre si pela atenção dos espectadores. Assim como em Hollywood, na América Latina o star system (ou “sistema de estrelas”) apostava em promover seus próprios astros, como as mexicanas Maria Félix, Ninón Sevilla e Dolores del Río (que também fez carreira nos Estados Unidos), as argentinas Niní Marshall e Libertad Lamarque, a cubana Rita Montaner, e os galãs mexicanos Pedro Armendáriz, Pedro Infante, Jorge Negrete, Fernando Soler, Arturo de Córdova, os atores cômicos Cantinflas e TinTan, e os argentinos Alberto de Mendoza e Arturo García Buhr.
Entre os cineastas mais populares dessa fase estão os mexicanos Juan Orol e Emilio Indio Fernández (diretor de Enamorada, La Perla e María Candelaria) e o cubano Ramón Peón. Esses diretores buscavam explorar os dramas humanos, abordando temáticas que envolviam tragédias e amores impossíveis – inspirados pelos filmes de Hollywood, pelo teatro de revista e pelas populares radionovelas. Da época clássica do cinema mexicano, o professor Aarón Fernández cita ainda os diretores Roberto Gavaldón (La Otra, Macario), Ismael Rodríguez (Nosotroslos Pobres, Los Tres García, Pepe el Toro) e, naturalmente, Luis Buñuel (diretor de Los Olvidados, Nazarín, Tristana, e um dos maiores nomes da vanguarda surrealista).
Uma onda de politização dominou os cinemas latinos ao final da década de 1950, motivada em parte pela Revolução Cubana (1959). A partir dessa movimentação política, foi criado o Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos (ICAIC), que contribuiu para que o cinema do país prosperasse. Alguns dos maiores clássicos da produção de Cuba foram realizados nesse momento histórico, incluindo os documentários de Santiago Alvarez e os filmes de Tomás Gutiérrez Alea. O ICAIC também acolheu muitos dos cineastas latino-americanos exilados pelos governos ditatoriais, nas décadas seguintes. Sua criação partiu de uma premissa de discussão sobre o teor de indústria ou de arte do cinema. O instituto defendia o aspecto artístico desse trabalho, que deveria ser produzido de forma crítica e consciente, promovendo a experimentação.
“O modelo de cinema até a década de 1950, na América Latina, ainda era predominantemente realizado para reproduzir um mercado hegemônico inspirado na indústria americana. Vale ressaltar, inclusive, uma temática tida como ‘higienista’, na qual as ‘questões’ internas de cada país deveriam ser evitadas, porque o cinema – pela mentalidade industrial da época – serviria apenas como um entretenimento escapista, não para gerar reflexões ou críticas quanto ao próprio sistema e o espelhamento da sociedade”, ressalta Pitanga. Contudo, com o crescente advento de estados repressivos e a tendência à importação de filmes estrangeiros pelo circuito exibidor, o sistema do mercado caseiro entrou em colapso. A partir desse contexto, muitos filmes começaram a ser produzidos no circuito independente, com maior liberdade de forma e conteúdo, abraçando temas como as regionalidades periféricas, as diferenças de classe, a discriminação, as questões indígena e racial e a perspectiva da mulher, o que fez com que o cinema latino se tornasse mais heterogêneo.
Nesse sentido, os anos 1960 foram muito importantes para a cinematografia da América Latina. Tanto os filmes ficcionais quanto documentais expressavam as ideias revolucionárias que circulavam pelos meios intelectuais. As teorias de cinema também estavam em seu auge, com a publicação de textos renomados, como Estética da Fome e Estética do Sonho, do cineasta brasileiro Glauber Rocha; Hacia un tercer cine, dos argentinos Fernando Solanas e Octavio Getino; e El cine imperfecto, do cubano Julio García Espinosa. As manifestações artísticas, em geral, passaram a dar voz aos protestos contra os regimes autoritários que se instauravam; desse modo, o cinema, a música, o teatro e as artes plásticas atuavam como instrumentos de intervenção na realidade.
“Alguns movimentos e resistências, tanto na América Latina quanto no mundo, influenciaram fortemente essas mudanças de postura, como a Revolução Cubana, o tropicalismo e o manifesto antropofágico brasileiros, bem como Maio de 68, a Guerra Fria, a Revolução Paz e Amor contra a Guerra do Vietnã, e a independência de países asiáticos e africanos dominados pela colonização – que os impedia, não por coincidência, de fazer cinema, já que o cinema é uma potência identitária que reforça a preservação da memória e a autonomia cultural de um país”, destaca Pitanga.
Inspirados pelo Cinema Novo no Brasil, cujos expoentes foram os cineastas Glauber Rocha e Nelson Pereira dos Santos, alguns movimentos latinos ganharam fôlego, clamando pelo que foi chamado de Terceiro Cinema (um fazer cinematográfico autêntico, ativista e engajado, próprio dos países subdesenvolvidos, que fugisse da estética e dos ideais hollywoodianos e europeus). Para esses artistas, o papel dos cinemas de Terceiro Mundo era revelar a verdade das coisas.
Outros diretores que abraçaram as propostas do novo cinema latino-americano e se tornaram expoentes desse período foram os argentinos Fernando Solanas (que foi exilado após o ator principal de seu filme Los Hijos de Fierro, Julio Drexler, ter sido assassinado), Leonardo Favio (de Crónica de um Niño Solo) e Octavio Getino; os cubanos Tomás Gutiérrez-Alea (Memórias do Subdesenvolvimento) e Santiago Alvarez (com trabalhos de found footage, como em 79 Primaveras); e os chilenos Raúl Ruíz (que dirigiu desde clássicos, como Tres Tristes Tigres e La Colonia Penal, até modernas coproduções internacionais, como Klimt), Miguel Littin (El Chacal de Nahueltoro) e Lautaro Murúa (renomado ator, nascido chileno, mas que trabalhou e dirigiu filmes na Argentina, como Shunko e Alias Gardelito).
O que unia os cinemas latinos, em uma época tão conturbada política e socialmente, era o espírito revolucionário. Na Argentina, foi criado o Grupo Cine Liberación e lançado o filme La Hora de los Hornos (1968), um verdadeiro manifesto político. No Uruguai, criou-se a Cinemateca del Tercer Mundo (1969-1973), que exibia filmes latinos de caráter crítico e militante, apostando na metáfora da câmera como uma arma de mudança social. Na Bolívia, o diretor Jorge Sanjinés produziu documentários que abordavam as problemáticas da população indígena, como Ukamau (1966). No México, destacaram-se, sobretudo, dois cineastas: Arturo Ripstein e Paul Leduc. Os festivais de cinema (como o de Viña del Mar, no Chile, e as Mostras de Cinema Documental Latino-Americano em Mérida, na Venezuela), tornaram-se importantes pontos de encontro para realizadores e cinéfilos, fundamentando as bases do movimento Nuevo Cine Latinoamericano.
A institucionalização do cinema latino se deu em 1969, no Brasil, com a criação da Embrafilme, e na Argentina com o Instituto Nacional de Cinema, enquanto no Chile era fundada a Chile Films. Embora a televisão conquistasse cada vez mais popularidade entre o público, o cinema permanecia ativo como um espaço de encontro e de discussão, principalmente política. Nesse contexto, foi imprescindível o Encontro de Cinema Latino-americano de 1967, organizado por figuras como o cubano Alfredo Guevara, fundador do ICAIC, o chileno Aldo Francia, do Cine Club de Viña del Mar (realizador do clássico Valparaiso mi amor), e o argentino Edgardo Pallero (que produziu Los Hijos de Fierro).
É necessário citar também as mulheres desse período, geralmente invisibilizadas. A respeito disso, Filippo Pitanga cita a colega Daniela Gillone, em texto publicado na página Horizontes ao Sul: “Nesse cinema em que se evidenciaram homens no comando de projetos políticos, poucos estudos se dedicam à história das mulheres cineastas latino-americanas, e como as mesmas lidaram com as questões políticas no cinema clássico e nesse cinema militante. Nora de Izcue, dirigiu filmes no Peru e coproduções com o Instituto Cubano nos anos 1970. Helena Solberg produziu A Entrevista no Brasil de 1966. Há ainda as cineastas chilenas exiladas Valeria Sarmiento e Marilú Mallet e a venezuelana Josefina Jordán, que atuava e dirigia. […] Além delas, encontram-se as diretoras do período clássico, como a mexicana Adela Sequeyro e a brasileira Carmen Santos.”
Na década de 1970, diversos países da América Latina ainda eram governados por militares, o que obrigou cineastas a se exilarem em outros países, principalmente na Europa. No entanto, houve aqueles que optaram pela resistência aos governos ditatoriais, como o grupo argentino Cine de la Base, que distribuía seus filmes clandestinamente e defendia a solidariedade internacional. No Chile, embora a produção de relevância tenha caído consideravelmente durante o golpe de Pinochet, devido ao exílio de inúmeros artistas, a oposição ao regime se manifestou em obras como La Batalla de Chile (1975-1976). Em 1979, também foi criado o Festival Internacional del Nuevo Cine Latinoamericano, em Havana, Cuba, para manter vivos os ideais dos cineastas revolucionários.
As dificuldades financeiras fizeram com que o cinema latino-americano passasse por um período de estagnação nos anos 1980, já que havia uma enorme dependência da produção cultural em relação ao estado – a maioria dos filmes era produzida por meio de incentivos fiscais ou com o apoio de instituições governamentais. Aliado a esse problema estava o desencanto do público com os filmes nacionais, especialmente quando comparados às superproduções norte-americanas. Para retomar a popularidade junto ao público, muitos cineastas buscaram fórmulas fáceis, como comédias ou adaptações literárias. Segundo Aarón Fernández, nessa época despontaram no México algumas cineastas mulheres, entre as quais Maria Novaro, Marisa Sistach e Dana Rotberg. “Alfonso Cuarón e Guillermo del Toro também fizeram seus primeiros filmes, antes de migrarem para Hollywood”, conta o professor.
Entre os anos 1990 e 2000, deu-se uma nova onda criativa em países como o Brasil, a Argentina, o México, o Uruguai e o Chile. Os filmes produzidos nessa época retratavam com realismo a população marginalizada, focando em dilemas da sociedade contemporânea, como a violência urbana. Alguns diretores se arriscaram a abordar feridas recentes, como as ditaduras militares (exemplo disso foi O que é isso, Companheiro?, de Bruno Barreto, que chegou a ser indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro, em 1998). Entre os destaques desse período estão os argentinos Lucrécia Martel, Pablo Trapero, Daniel Burman e Juan Jose Campanella, os mexicanos Alejandro González Iñárritu (que posteriormente teve uma bem sucedida carreira nos Estados Unidos, sendo vencedor de diversos Oscars por filmes como O Regresso / The Revenant e Birdman), Alfonso Arau, Everardo González, Carlos Reygadas, Amat Escalante, Julio Hernández Cordón e Mariana Gajá, os uruguaios Juan Pablo Rebella e Pablo Stoll, o cubano Tomás Gutiérrez Alea e o chileno Andrés Wood.
No Brasil, os expoentes da chamada Retomada do cinema brasileiro foram Walter Salles, Fernando Meirelles, Bruno Barreto, Laís Bodanzky e Carla Camurati, entre outros. O cinema contemporâneo do país foi muito impulsionado pelo sucesso de Cidade de Deus, de Meirelles (indicado ao Oscar de melhor direção, em 2004), seguido por José Padilha, Cláudio Assis e Karim Aïnouz. Essas produções ganharam visibilidade no exterior, recebendo premiações em festivais internacionais, o que garantiu algum retorno financeiro para seus realizadores, estimulando também o surgimento de uma nova leva de jovens cineastas. Cada vez mais, o cinema nacional ganha fôlego, conquistando os brasileiros. Segundo dados da Ancine, o público que assistiu a filmes nacionais em 2017 dobrou com relação a 2012, de cerca de 15 mil para 30 mil espectadores.
De acordo com Filippo Pitanga, o cinema precisa subsistir não apenas como expressão artística, mas como viabilidade de produção geradora de empregos, com retorno autossustentável. “A verdade é que nem o maior sucesso local de cada país latino-americano consegue alcançar, internamente, a bilheteria caseira de um blockbuster estrangeiro. A influência estrutural arraigada na sociedade é forte e costuma passar na peneira para produções locais, especialmente em afinidades mais comerciais com o grande público, como o movimento da chamada ‘globochanchada’, na contemporaneidade brasileira, de comédias com núcleos tirados da TV e da mistura de esquetes adaptadas do cinema norte-americano e da brasilidade típica (como já eram as chanchadas da Atlântida)”, lembra o professor. Entretanto, segundo Pitanga, existe uma oposição de novas ideias que contradizem o sistema e que mantêm a resistência necessária para que o meio não se torne engessado – exemplos disso são as demandas de representatividade da “primavera das mulheres” e a “primavera étnico-racial”, que constituem o atual ponto de tensão com o cinema hegemônico.
Principais características estéticas
Entre as produções latino-americanas, destaca-se o cinema de autor dos anos 1960, com sua estética preocupada em despertar a reflexão política e retratar o universo periférico dos países de Terceiro Mundo. O foco estava nas experimentações, influenciadas pela onda vanguardista dos movimentos artísticos europeus. O chamado novo cinema latino-americano também tinha um caráter nacionalista e contestador, anti-imperialista, dando voz às camadas marginalizadas da sociedade. Era um cinema de postura crítica, voltado à criação de uma identidade latina, na contramão da dominação norte-americana.
Aspectos marcantes desse período abrangem a ruptura da linearidade narrativa e discursiva, a multiplicidade de pontos de vista, o uso de voz em off, a manipulação de imagens de arquivo para gerar novos sentidos, a mistura de ficção e documentário, além da busca por originalidade e do uso de recursos metafóricos e alegóricos, que afastavam os filmes do modelo comercial focado no entretenimento que se via nas produções de Hollywood.
Nos anos 1970, houve uma mudança significativa na estética dos filmes produzidos na América latina. Os regimes militares levaram ao exílio de muitos cineastas, o que praticamente paralisou a produção cinematográfica em diversos países latinos. No Brasil, a criação da Embrafilme trouxe investimentos essencialmente para os projetos que se adequassem às demandas do governo, servindo como uma espécie de propaganda institucional. A censura também exerceu um papel fundamental no teor das obras produzidas, que passaram a se pautar por um forte moralismo, evitando palavrões e figurinos ousados. Filmes considerados “subversivos”, que não passavam por esse crivo, eram obrigados a circular na clandestinidade e tratados como ameaça à segurança nacional. A censura só terminou, de fato, com a Constituição de 1988; a Embrafilme, por sua vez, foi substituída pela Ancine, a Agência Nacional do Cinema, inaugurada em 2001.
Nessa época, as características estéticas da produção latino-americana contemporânea se afastaram muito daquelas empregadas durante os anos 1960 e 1970, reaproximando-se do cinema mainstream para conquistar sucesso comercial. Alguns cineastas isolados mantiveram suas propostas temáticas e estilísticas inovadoras; porém, muitos se adequaram ao padrão hollywoodiano para obter recursos. Uma característica compartilhada pelos cinemas da América Latina, a partir dos anos 1980 até os dias de hoje, é o desconhecimento da produção dos países vizinhos, já que os cinemas nacionais são geralmente voltados para seu próprio público.
Ao longo das décadas de 1990 e 2000, a tendência do cinema latino-americano, principalmente no Brasil, foi para narrativas focadas no indivíduo/personagem e não no contexto, priorizando a qualidade e a precisão técnicas. O resgate das raízes nacionais se manifestou por meio de temáticas históricas, mas sem o caráter de denúncia política do Cinema Novo. Além disso, o retrato das camadas marginalizadas da população passou a ser usado como característica estética – exemplos disso são os longas Amores Brutos (2000), do mexicano Alejandro González Iñárritu; o brasileiro Central do Brasil (1998), de Walter Salles; e o argentino Nove Rainhas (2000), de Fabián Bielinsky. Hoje, as tendências apontam para a busca dos cineastas por uma linguagem pessoal e a exploração das temáticas dos indivíduos subalternos.
Mais recentemente, as políticas públicas de incentivo e investimento no setor da cultura, obrigação constitucional prevista em Lei no Brasil, passaram a atuar na preservação da memória e na formação de uma identidade reflexiva para o país e suas futuras gerações. “Essas iniciativas foram responsáveis pela descentralização das produções contemporâneas; que não são mais financiadas apenas no Sudeste brasileiro, por exemplo, migrando para regiões antes não contempladas, ou que, mesmo quando retratadas anteriormente no cinema, como o Nordeste brasileiro ou as favelas periféricas, não lhes era permitido ter voz como sujeitos da ação nas principais funções criativas, sendo tratados como objetos de um criador estrangeiro no próprio país”, completa Pitanga.
Legado para o cinema
O conceito de cinema de Terceiro Mundo que surgiu na América Latina durante a década de 1960, apesar de muito influenciado por movimentos vanguardistas europeus, deixou seu legado único para a sétima arte, fundamentando as bases para a criação de filmes engajados política e socialmente, preocupados com questões ideológicas – incluindo-se, aqui, o Cinema Novo brasileiro.
“Glauber Rocha foi uma pessoa central, que manteve contato com inúmeros outros cineastas brasileiros e latinos em prol de uma união das diferenças que nos potencializavam. A famosa frase de Glauber já diz muito: ‘Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça’, pois são palavras que significam a democratização dos meios, a independência dos grandes estúdios, de locações externas, e a liberdade criativa não subordinada aos grandes produtores”, explica Pitanga. “Filmes como Terra em Transe são cruciais para entendermos como o cinema criava um olhar opositivo e catártico sobre seu entorno. Assim como Os Fuzis, de Ruy Guerra, ABC da Greve, de Leon Hirszman, ou mesmo A Entrevista, de Helena Solberg – uma das únicas cineastas mulheres, considerada parte indissociável do Cinema Novo, numa época em que os modos de produção ainda eram essencialmente excludentes e patriarcais.” Vale ressaltar, sobre a influência do cinema brasileiro na América Latina, o exemplo de Helena Solberg: mesmo exilada nos EUA, ela ainda conseguiu realizar diversos filmes em meio às revoluções latinas, com foco na perspectiva das mulheres – como The Emerging Woman, trabalho pioneiro que retrata a evolução do feminismo no continente americano.
É importante observar ainda que, nos anos 1960, despontou na cultura latino-americana uma movimentação de cinemas que buscaram se alinhar contra o imperialismo norte-americano, em especial contra a hegemonia da indústria cinematográfica de Hollywood, para que pudesse ser estabelecida uma unidade latina de teor crítico, realista, popular e revolucionário. A flexibilidade dos artistas para se adaptarem às diferentes situações e condições sociais também foi uma característica marcante desse cinema, que inspirou inúmeros cineastas do Terceiro Mundo nas décadas seguintes.
O espaço simbólico periférico, retratado nos filmes daquele período, passou a ser assumido como parte de uma estética própria, sem medo de revelar a realidade social cotidiana dos países subdesenvolvidos. A criatividade para lidar com as limitações de produção e com os mecanismos de censura deu vazão a uma expressão artística inovadora, repleta de complexidades. Além disso, as produções dos países mais ativos cinematograficamente na América Latina (especialmente Brasil, Argentina e México) influenciou de maneira significativa os demais cinemas latinos.
Uma possibilidade que se abre de maneira ampla, atualmente, é a produção cinematográfica em parceria entre os países latino-americanos. Nesse sentido, o cineasta Aarón Fernández é otimista: “Existe diálogo entre o Brasil e o México, uma vez que são países muito próximos e que têm tudo a ganhar se aproximando ainda mais, juntando forças e investimentos. Este ano, saiu o edital de coprodução bilateral Brasil-México, o qual espero que seja mantido pelo novo governo e que seja só o começo de uma possível grande parceria entre as duas cinematografias mais importantes do continente.”
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*Texto e pesquisa Katia Kreutz. Foto em destaque de Duda Tavares da atriz argentina Ines Efron, que esteve na Semana de Orientação da AIC na inauguração da unidade do Rio de Janeiro.