Cinema Baiano | Especial Nordeste
O diferencial do cinema contemporâneo produzido na Bahia fica por conta das temáticas com foco na representatividade
Um pouco de história
Nascido na Bahia, Glauber Rocha acabou produzindo filmes em diversos lugares do país e do mundo.
A cinematografia baiana, que conta com nomes de peso como Glauber Rocha, já passou por diversas fases ao longo da história. Tudo começou em 1959, com o lançamento do primeiro longa-metragem gravado no estado, que iniciou também a carreira do ator Geraldo Del Rey: Redenção, de Roberto Pires. Um detalhe curioso é que o cineasta criava os equipamentos usados em seus filmes de maneira artesanal e foi responsável pela invenção de uma lente anamórfica, o Igluscope (semelhante ao Cinemascope).
O sucesso dessa produção impulsionou o chamado Ciclo Baiano de Cinema (1959-1963); que, por sua vez, fomentou o movimento do Cinema Novo – o qual teve como um de seus expoentes, claro, o baiano Glauber Rocha. Foi um encontro casual entre o (na época ainda inexperiente) cineasta e o produtor Rex Schindler que deu origem à Escola Bahiana de Cinema, com uma proposta de implantar uma infraestrutura cinematográfica local. Dessa associação surgiu o primeiro longa de Glauber, Barravento (1962). Entre os postulados da Escola estavam a valorização das raízes e da cultura do estado, o que não seria possível sem um sistema para a produção de filmes de maneira contínua, movimentando uma indústria que fosse capaz de se auto sustentar. Assim, a Bahia se tornou uma verdadeira Meca do cinema brasileiro, aglutinando cineastas também de outras regiões do país.
No início dos anos 1960, a Escola Bahiana de Cinema, tendo Schindler como principal produtor, realizou os filmes Barravento, A Grande Feira (1961) e Tocaia no Asfalto (1962). Outras produções que se destacam, desse período, são O Caipora (1963), de Oscar Santana, produzido por Winston Carvalho; Sol sobre a Lama (1964), uma produção realizada com dinheiro do próprio bolso por João Palma Neto e dirigida por Alex Viany; e O Grito da Terra (1964), filme aclamado de Olney São Paulo, que tem no elenco Helena Ignez. E enquanto Glauber buscava recursos para realizar suas obras em outros estados, Schindler investiu em uma coprodução entre Brasil e Portugal: A Montanha dos Sete Ecos (1963), de Armando de Miranda, longa todo filmado na cidade histórica de Cachoeira, que chegou a ser exibido em algumas capitais.
Embora Glauber Rocha seja um dos nomes mais lembrados quando se pensa em cineastas baianos (ainda que ele também tenha atuado em outros locais do país), foram muitos os realizadores que ajudaram a construir a história do cinema no estado, incluindo Roberto Pires, Olney São Paulo, Luiz Paulino dos Santos, Orlando Senna, Geraldo Sarno, Moacir Gramacho, Alexandre Robatto, Braga Neto, Luis Paulino dos Santos, Trigueirinho Neto e Oscar Santana, além de críticos importantes para o país, como Walter da Silveira, criador do Clube de Cinema da Bahia.
Durante o regime militar, o cinema documental foi a ferramenta de protesto de cineastas como Agnaldo Azevedo, Guido Araújo, Tuna Espinheira, José Telles, Timo Andrade, Roberto Gaguinho, Lázaro Torres, Kabá Gaudenzi, José Walter Lima, Wandeoursen, Lucio Mendes, Roque Araújo e Alonso Rodrigues. Na onda da contracultura, destacaram-se nomes como André Luiz de Oliveira, Álvaro Guimarães e Zé Humberto Dias, enquanto Fernando Coni Campos e José Frazão emplacaram sucessos no grande circuito, com o apoio da Embrafilme.
Ainda sob o regime militar, o surgimento do Super 8 possibilitou o cinema de Pola Ribeiro, Fernando Belens, Edgard Navarro, Jorge Felippi e Joel de Almeida. Nessa época, o Grubacin foi um grupo que reuniu profissionais liberais para produzir filmes, como os fotógrafos Robson Roberto, Ailton Sampaio, Milton Gaúcho, Cícero Bathomarco e Carlos Modesto. Surgiu também um movimento que se denominou “neonovíssimo Cinema Novo”, do qual fizeram parte Virgilio Carvalho e Marcus Sergipe. Já Chico e Alba Liberato produziram uma pioneira animação de longa-metragem.
Já na década de 1990, o cinema baiano continuou se desenvolvendo, mesmo com a crise do governo Collor. Com a retomada do cinema nacional, houve uma mobilização dos cineastas do estado em busca de melhores políticas públicas para o setor. Entre os nomes de realizadores dessa fase estão Sergio Machado, Jorge Alfredo, Rosana Almeida, Antônio Olavo, Edyala Iglesias, Roberto Duarte, Monica Simões, Solange Lima, Adler Paz, Lula Oliveira, Kiko Povoas, Caó Cruz Alves, Henrique Dantas, João Rodrigo Mattos e Sofia Federico, Karina Rabinovtiz, Élson Rosário, Fábio Rocha e Daniel Lisboa.
Mais recentemente, a partir dos anos 2000, destacam-se longas como Samba Riachão (2001), de Jorge Alfredo; Esses Moços (2004), de José Araripe Jr.; Cascalho (2004), de Tuna Espinheira; Cidade Baixa (2005), de Sérgio Machado; Eu me Lembro (2005), de Edgard Navarro; A Cidade das Mulheres (2005), de Lázaro Faria; Revoada (2008), de José Umberto Dias; Estranhos (2009), de Paulo Alcântara; Pau Brasil (2009), de Fernando Belens; Filhos de João (2009), de Henrique Dantas; e O Jardim das Folhas Sagradas (2011), de Pola Ribeiro; além de inúmeros curtas premiados.
Cinema baiano contemporâneo
São diversos os cineastas que têm mostrado trabalhos interessantes no cinema baiano contemporâneo. Entre esses artistas estão Ramon Coutinho, Amaranta Cesar, Glenda Nicácio e Ary Rosa, Marcus Curvelo, Vinicius Eliziáriu, Leon Sampaio, Daniel Lisboa, Viviane Ferreira, Maria Carol e Igor Souza, Pedro Perazzo e Rodrigo Luna, Safira Moreira, Michelle Mattiuzze, Cláudio Marques e Marília Hughes, João Lins e Maria do Socorro Carvalho, além de Gabriela Amaral (que atualmente tem produzido em São Paulo).
De acordo com Ramon Coutinho, nascido na cidade de Conceição do Coité, no interior da Bahia, e morador de Salvador, o cinema produzido atualmente no estado tem como diferencial as pautas focadas em questões de representatividade. “Acabamos agora o Panorama, o festival mais importante daqui no que diz respeito ao escoamento da produção independente. Eu acho que estamos em um momento, nos últimos anos, de afirmação – quanto a questões de raça, de negritude, de sexualidade”, explica o realizador. Para ele, tratar de tais assuntos é uma forma de o cinema baiano firmar sua posição a esse respeito, talvez de maneira mais direta do que outros cinemas da região Nordeste. “Arrisco dizer que a maioria dos curtas que vi nos últimos tempos tratava desses temas. Temos um cinema muito pautado em questões políticas, em debates de inclusão de novos sujeitos na tela”, completa.
Ramon é formado em história e desenvolve pesquisas relacionando sua área ao cinema, além de já ter atuado como crítico. “Cursei bacharelado interdisciplinar em artes, com área de concentração em cinema e audiovisual, e foi nesse curso que comecei minhas primeiras experiências práticas. Foi nessa experiência que o coletivo Cual se formou, em 2011”, conta. O coletivo já realizou diversos filmes, além de atuar em oficinas, mostras e cineclubes. “Atualmente, mais que ‘cineasta’, eu me considero um ‘audiovisuero’ – ou seja, alguém que se envolve com diversas atividades na área. Sinto que esse termo se contrapõe ao glamour em torno da ideia de fazer cinema.”
Uma das características mais marcantes do trabalho do Cual diz respeito ao modelo de produção. Na mesma época de sua criação, começaram a surgir uma série de coletivos por todo o Brasil. “A gente foi muito influenciado por essa nova forma de criação, sem privilegiar a produção de filmes em si, mas se propondo a elaborar atividades em todos os campos do audiovisual. Por exemplo, a gente criou mostras e um cineclube que dava espaço para curtas-metragens independentes, feitos com baixíssimo orçamento. Também fizemos mostras de filmes baianos pelo interior”, ressalta.
Segundo Ramon, a Oficina Urgente de Audiovisual do coletivo, voltada à produção de baixo custo, era um espaço de formação tanto para os alunos quanto para os próprios realizadores. “O Cual se destacou, nesses anos, tanto por prêmios como pela circulação de alguns curtas, mas principalmente por essa atitude diferente, essa necessidade de produção intensa”, afirma. “No contexto em surgimos, a média de tempo para se fazer um longa na Bahia que era de três a quatro anos. A gente ficava muito chocado com essa dificuldade toda. Desde o início, quisemos burlar isso, esse modo de produção muito ‘limpinho’; tanto que nossos filmes são realmente um pouco ‘loucos e toscos’. Mas a gente se orgulha deles.”
Conforme explica Ramon, a produção das turmas de Cachoeira é uma das mais fortes nos dias de hoje, no estado da Bahia. “Eles têm um curso de audiovisual muito forte e um festival importante (Cachoeira Doc). Criou-se uma cena interessante. Acho que eu destacaria a Glenda Nicário, da Rosza Filmes, que ganhou o Festival de Brasília com Café com Canela (codirigido por Ary Rosa). É uma produção muito forte, a desses grupos e novos cineastas, a partir de ideias de identidade e raça”, salienta o cineasta, que considera como um clássico inegável do cinema de sua terra o longa SuperOutro (1989), de Edgard Navarro. “Eu destacaria também um filme de performance e dança, de um coletivo daqui, chamado Pinta (2013), de Jorge Alencar. É um longa arriscado, muito diferente do que é produzido aqui.”
Para Ramon, o cinema baiano atual está calcado em uma base temática, focada na representatividade. “Nosso cinema ainda possui uma estética muito formalista, no sentido de contar claramente essas histórias, de incluir essas personagens e esses conflitos, principalmente a partir da questão de raça e de negritude. Acho que a gente ainda se arrisca muito pouco por aqui, no que diz respeito à experimentação audiovisual. Boa parte dos filmes produzidos na Bahia estão muito vinculados a uma dramaturgia mais clássica. Não que isso seja necessariamente ruim, apenas que o risco estético é pequeno”, observa.
Como no resto do Brasil, o cenário audiovisual da Bahia também depende de editais públicos, que têm enfrentado problemas para manter uma certa constância no apoio aos filmes. “A política do estado não é muito regular e isso prejudica a cadeia de produção local, porque a gente depende disso. No Cual, tratamos de maneira diversa essa questão da participação do dinheiro público no nosso trabalho. Tentamos fazer filmes tanto com esses recursos quanto sem dinheiro algum, como uma resposta, uma afirmação de que a gente não precisa fazer cinema apenas a partir de edital, ou justificar a ausência de uma produção de conteúdo porque não temos edital. Acredito que produzir filmes seja uma das formas mais eficientes de exigir e de cobrar políticas públicas mais constantes”, conclui o realizador.
Filmes imperdíveis
Conheça alguns filmes baianos que vale a pena assistir, para saber um pouco mais sobre o cinema produzido nesse estado tão rico em histórias e heranças culturais:
O Pagador de Promessas (1962)
Embora o diretor Anselmo Duarte seja paulista, o filme foi rodado em Salvador. Considerado um dos mais importantes do país, foi o único longa brasileiro a conquistar a Palma de Ouro no Festival de Cannes, na França. A história fala de Zé do Burro, dono de uma pequena propriedade no interior da Bahia. Quando seu burro Nicolau adoece, ele promete dividir suas terras entre os pobres e carregar uma cruz até a Igreja de Santa Bárbara, na capital.
Barravento (1962)
Primeiro longa-metragem de Glauber Rocha, filmado na praia do Buraquinho, em Itapuã. A história acompanha uma aldeia de pescadores, de antepassados africanos, que mantém cultos místicos ligados ao candomblé. Firmino, um antigo morador que retorna ao povoado, encomenda um despacho para se livrar de um rival amoroso, mas o alvo acaba sendo a própria aldeia.
Meteorango Kid – Herói Intergalático (1969)
Um clássico do cinema underground, o longa dirigido por André Luiz Oliveira ganhou vários prêmios no Brasil e no exterior. Conta as aventuras de Lula, um estudante universitário de uma geração oprimida pelo regime militar. No dia de seu aniversário, o anti-herói atravessa o labirinto cotidiano através de seus delírios libertários.
Dona Flor e Seus Dois Maridos (1976)
Dirigido pelo carioca Bruno Barreto, mas gravado em Salvador, o filme é uma adaptação da obra de um renomado baiano – Jorge Amado. Recordista de bilheterias durante várias décadas e um dos maiores sucessos do cinema nacional, conta a história de uma sedutora viúva (Sônia Braga), que tem um caso com o fantasma do ex-marido.
Boi Aruá (1983)
A primeira animação produzida na Bahia, com direção de Chico e Alba Liberato, levou dois anos para ser concluída e passou por diversos festivais europeus. Baseada no folclore sertanejo, a história trata de um fazendeiro arrogante, cujo o poder é desafiado pela figura fantástica do Boi Aruá.
Cidade Baixa (2005)
Dirigido por Sérgio Machado, o filme mostra um triângulo amoroso entre uma stripper e dois homens que trabalham com transporte marítimo para a Cidade Baixa de Salvador. Ela pega carona com eles e interfere na dinâmica da dupla. O longa retrata o cotidiano da população local, em uma realidade de pobreza, violência e prostituição.
Ó Paí, Ó (2007)
Com direção de Monique Gardenberg, o filme conta com a participação de Caetano Veloso na trilha sonora e diversos atores do Bando de Teatro Olodum no elenco. A história se passa em meio ao Carnaval, em um animado cortiço do centro histórico do Pelourinho. É quando uma vizinha religiosa resolve acabar com a festa, fechando o registro de água do prédio.
Quincas Berro D’Água (2010)
O filme de Sérgio Machado, protagonizado por Paulo José, conta a história de um funcionário público cansado de sua vida, que resolve abandonar a família e cair na farra, tornando-se “o rei dos vagabundos”. Algum tempo depois ele é encontrado morto e os familiares resolvem apagar os vestígios dessa fase duvidosa no funeral, até que aparecem seus amigos… com outros planos.
Capitães de Areia (2011)
A neta de Jorge Amado, Cecília, adaptou a obra do avô para o cinema. Na história, que se passa nos anos 1930, um grupo de meninos abandonados vive em um trapiche e pratica pequenos assaltos na cidade de Salvador, liderados pelo malandro Pedro Bala.
Café com Canela (2017)
O longa baiano, que conquistou três prêmios no Festival de Brasília, fala sobre Margarida, uma mulher que vive isolada por conta da dor de perder seu filho. Ela reencontra uma antiga conhecida, também marcada pelo luto, e entre faxinas e cafés as duas vão ressignificando suas vidas. O filme aborda questões como amizade, machismo e homofobia.
* Texto e pesquisa Katia Kreutz fotos divulgação dos filmes – foto destaque filme Café com Canela.