A pergunta é mais complexa do que parece, já que vários aspectos podem ser levados em consideração para avaliar o impacto e a relevância de uma obra cinematográfica.
Historiograficamente, o cinema clássico abrange um período que vai do nascimento do cinema, em 1895, até o início do movimento neorrealista italiano, na década de 1940.
Muitos dos filmes dessa época, inclusive os da chamada de Era de Ouro de Hollywood, ainda se mantêm como favoritos dos espectadores, mesmo após serem vistos e revistos inúmeras vezes.
Tais obras se tornaram parte do cânone da sétima arte e são apresentadas como referências para quem estuda a história do cinema mundial.
Nos Estados Unidos, um filme somente pode entrar no National Film Registry 25 anos após a data de seu lançamento. Esse é o tempo aproximado para que um longa possa ser considerado clássico, na opinião de alguns estudiosos. Contudo, a definição também varia conforme o parâmetro analisado:
Um clássico pode ser um filme que bateu recordes de bilheterias ou de premiações.
Pode ser um filme original e diferente da maioria.
Pode ser também um filme que influenciou muitas pessoas e se tornou parte da cultura, de alguma forma.
Um filme que é considerado atemporal e memorável.
Em geral, são consideradas clássicas as produções do período denominado Era de Ouro de Hollywood.
O que caracteriza um filme clássico?
De acordo com Marcelo Müller, editor e crítico do Papo de Cinema e professor da AIC, as características estilísticas que definem o cinema clássico ganharam notoriedade nas primeiras décadas do século XX e se consolidaram como modelo hegemônico ao final da Segunda Guerra Mundial.
“Em linhas gerais, o cinema clássico é caracterizado por narrativas lineares, com início, meio e fim bem definidos e um encerramento fechado. Também é uma constante do período clássico a soma de procedimentos para gerar certa magia, como se não fosse possível ao cinema se apresentar ao espectador enquanto fruto de uma série de artifícios. Especialmente no cinema hollywoodiano, eram comuns os finais felizes e/ou conciliatórios”.
Clássico Casablanca, de 1942
Para o cineasta e professor da AIC Pedro Jorge, há uma linha tênue entre o cinema clássico e o moderno, já que eles se visitam e convivem de forma harmoniosa e ao mesmo tempo conflitante.
“O cinema clássico ‘mastiga’ a linguagem para o espectador, tornando a montagem invisível. Para exemplificar, isso acontece quando o público não sente cada corte, nem estranha algum tipo de mudança brusca dentro da montagem. O uso da música também contribui, tornando a relação do espectador com o filme mais catártica. Os personagens não ‘quebram a quarta parede’ (que acontece quando um ator se dirige diretamente ao público, por exemplo, ou toma conhecimento de que as ações do filme não são reais) e em nenhum momento atuam de forma que o público duvide daquilo que está vendo”.
Segundo Müller, mesmo os movimentos de avanço (como o Expressionismo Alemão), guiavam-se em parte por essas regras, que foram subvertidas gradativamente até a geração do cinema moderno. “É importante pontuar que as mudanças não aconteceram de uma hora para a outra, mas foram paulatinas e alimentadas ao longo das décadas por iniciativas de vanguarda”, explica o professor.
O que caracteriza o Cinema Moderno?
A transição do clássico para o moderno não deve ser vista necessariamente como a substituição de um tipo de cinema por outro, mas como uma transição natural. “A base do cinema moderno é exatamente o cinema clássico, que transcendeu determinados limites, quebrou barreiras e remodelou cânones. O cinema se reinventou”, afirma Müller. Um exemplo disso são os cineastas da Nouvelle Vague, que, embora fizessem parte de um movimento moderno, utilizaram e reconfiguraram elementos do cinema clássico hollywoodiano – por exemplo, Acossado / À Bout de Souffle (1960), com suas referências aos filmes policiais. Afinal, para romper alguns padrões, é preciso primeiro conhecê-los.
De acordo com Marcelo Müller, o cinema moderno nasceu com o Neorrealismo Italiano, especificamente com Roma, Cidade Aberta / Roma Città Aperta (1945), de Roberto Rossellini. “É fruto de uma série de experimentos que vinham sendo feitos ao longo dos anos anteriores, mas também uma resposta artística aos efeitos da Segunda Guerra Mundial. A falta de provisões e a desilusão do conflito que alterou a percepção do mundo sobre a realidade determinaram a maneira como Rossellini driblou convenções para estabelecer uma nova forma de fazer cinema”, conta.
Já o cinema moderno no modelo americano surgiu com Cidadão Kane / Citizen Kane (1941), de Orson Welles. “Welles trouxe algumas mudanças bruscas nesse filme, como a profundidade de campo, o plongée (que, em francês, significa ‘mergulho’ e se refere a uma câmera alta, voltada para baixo) e o contra-plongée, as elipses temporais radicais e a narrativa fragmentada (começo, meio e fim, não necessariamente nessa ordem). Além disso, ele contribuiu com a experiência que tinha dentro do rádio e do teatro, o que trouxe algumas mudanças na forma de atuação, buscando novas nuances na tela e quebrando a ‘quarta parede’, entre outras inovações”, observa Pedro Jorge.
Algumas características marcantes da modernidade são a existência de personagens mais complexos, multifacetados, menos afeitos ao maniqueísmo; além disso, a câmera ganhou mobilidade e o movimento se insinuou como um grande vetor dessa mudança. “A montagem não necessariamente criava um percurso linear e os finais eram frequentemente abertos. Por um lado, havia maior fidelidade à ideia de vida real, e, por outro, uma noção acurada do cinema como uma forma de arte única e fascinante que, inclusive, pode refletir acerca de si própria”, completa Müller.
Cinema Clássico x Cinema Moderno
Qual seria, então, a maior diferença entre o cinema clássico e o cinema moderno? Possivelmente a liberdade de se reinventar, de quebrar supostas regras a favor de experiências múltiplas e, talvez, mais íntimas. Enquanto o cinema clássico buscava, majoritariamente, envolver o espectador em um universo mágico e fantástico, o cinema moderno surgiu com preocupações mais profundas, como refletir sobre sua própria natureza e seu papel social, até mesmo convidando o espectador a meditar sobre o processo durante a sessão. Essas subversões propunham uma ruptura do fluxo que era “vendido” pelo cinema clássico, cujo objetivo seria criar uma ilusão à qual o público deveria se entregar completamente.
Vale ressaltar que um tipo de cinema não desmerece o outro. Todos os momentos cinematográficos possuem seu lugar na história e foram motivados por circunstâncias externas – políticas, econômicas, sociais ou culturais. O repertório dos espectadores contemporâneos é composto de uma série de filmes considerados clássicos, obras de extrema maestria em sua composição narrativa e estética. Curiosamente, muitos filmes que se encaixam na definição do cinema moderno já são considerados por muitos, nos dias de hoje, como clássicos. De certo modo, os filmes notórios de hoje se tornam os clássicos de amanhã.
Para saber mais (ou por onde começar)
Segundo Marcelo Müller, entre os maiores representantes do cinema clássico está o diretor norte-americano que ajudou a moldar o gênero western, John Ford, de No Tempo das Diligências / Stagecoach (1939). Já o alemão radicado nos Estados Unidos Ernst Lubitsch, de Ladrão de Alcova / Trouble in Paradise (1932), foi um verdadeiro mestre da comédia sofisticada. Outra figura emblemática foi Alfred Hitchcock, com seu longa Os 39 Degraus / The 39 Steps (1935), que transitou entre o clássico e o moderno. Douglas Sirk, de Palavras ao Vento / Written on the Wind (1956), é considerado o grande diretor do melodrama cinematográfico. Saindo das produções hollywoodianas, o cineasta japonês Akira Kurosawa, de Os Sete Samurais / Shichinin no samurai (1954), também pode ser citado como um exemplo do cinema clássico. A lista de grandes cineastas é extensa, não podendo faltar o nome de Charles Chaplin, de Tempos Modernos / Modern Times (1936), possivelmente o maior de todos os clássicos.
Já entre os destaques do cinema moderno estão os cineastas Orson Welles, de Cidadão Kane / Citizen Kane (1941), que é também considerado por muitos como um clássico; John Cassavettes, de Sombras / Shadows (1958); François Truffaut, de Os Incompreendidos / Les quatre cents coups (1959); Jean-Luc Godard, de Acossado / À Bout de Souffle (1960); Federico Fellini, de A Doce Vida / La Dolce Vita (1960); Nelson Pereira dos Santos, de Vidas Secas (1963); Glauber Rocha, de Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964); Pier Paolo Pasolini, de Teorema (1968); Luis Buñuel, de O Discreto Charme da Burguesia / Le charme discret de la bourgeoisie (1972); Ingmar Bergman, de Gritos e Sussurros / Viskningar och rop (1972); Francis Ford Coppola, de O Poderoso Chefão / The Godfather (1972); Martin Scorsese, de Taxi Driver (1976); Roman Polanski, de O Inquilino / Le Locataire (1976); Woody Allen, de Noivo Neurótico, Noiva Nervosa / Annie Hall (1977); Abbas Kiarostami, de Close-up / Nema-ye Nazdik (1990); e Claire Denis, de Bom Trabalho / Beau Travail (1999). “A lista é infindável”, declara o professor.
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