A AIC celebra uma jornada criativa de 15 anos, com uma história que acompanha e se mistura ao crescimento do mercado audiovisual
O ano era 2004 e acabava de ser inaugurada em Curitiba/PR uma escola de cinema inovadora no país: a Academia Internacional de Cinema (AIC). Trazendo para o Brasil uma equipe de professores do mercado audiovisual, com carreiras internacionais e repertórios variados, a escola se propunha a desenvolver um programa profissionalizante, voltado à prática, no qual os alunos pudessem realmente vivenciar a dinâmica de um set de filmagem.
A primeira turma da AIC agregou alunos dos mais diversos estados, todos com o mesmo objetivo: ingressar no mercado audiovisual. “Eu não tinha a menor intenção de abrir uma escola do tamanho da que temos agora. Tínhamos a ideia de criar um conservatório de cinema no Brooklyn, em Nova York, antes de recebermos o convite para desenvolver nosso projeto em Curitiba”, diz o norte-americano Steven Richter, cofundador e diretor de desenvolvimento da AIC.
Na época, Curitiba oferecia alguns incentivos interessantes para a área das artes. “Quando chegamos à cidade, vimos que, apesar de algumas pessoas entusiasmadas com o projeto — como por exemplo, o ex-governador Jaime Lerner, que é um notório cinéfilo e que nos recebeu com muita simpatia — não tínhamos muito apoio da comunidade política e artística local, talvez por sermos percebidos como outsiders”, explica Flávia Rocha, cofundadora da escola e diretora de comunicação. “De qualquer forma, montamos a AIC (então AICC – com o “C” de Curitiba) sem nenhum recurso público, apostando todas as fichas no potencial da escola e em sua capacidade de se autossustentar”.
De acordo com Steven, em seu início a escola em Curitiba manteve muitos dos elementos da visão original, que incluía um primeiro ano de estudos chamado Craft, seguido por outro ano em um laboratório de produção dos próprios alunos (Lab 2), no qual eles poderiam ter experiências de trabalho. Ao mesmo tempo, a Lab 1 seria uma empresa produtora, em que os professores trabalhariam e os alunos atuariam como estagiários.
“Mas o que descobrimos, ao chegar em Curitiba, é que as pessoas realmente precisavam de uma escola de cinema prática, porque na época não existiam no Brasil cursos voltados para a formação profissional fora do espaço das universidades, cursos que fossem mais extensos do que workshops”, explica.
A carência de ensino prático ou técnico na área audiovisual, nos moldes propostos pela Academia Internacional de Cinema e tendo como foco a formação de profissionais, foi o fator decisivo para lançar o empreendimento no país. “Vimos uma grande oportunidade de desenvolver um trabalho que tivesse impacto. Tínhamos uma visão — e agora tínhamos que convencer ‘o mundo’ de que era possível montar uma escola de cinema no Brasil. O mercado estava começando a dar os primeiros sinais de retomada. Então, não podia ser um momento melhor”, conta Flávia.
Um ano e meio depois da abertura da escola em Curitiba, com os cursos já bem formatados e uma rede de relacionamentos maior, a AIC migrou para a capital paulista. “Foi lá que a AIC floresceu. Mesmo uma cidade imensa como São Paulo carecia de uma escola prática na área de cinema”, diz Flávia. Essa expansão para outros estados (inclusive com a abertura da filial no Rio de Janeiro, em 2015) está no DNA da escola. “Lembro que, no meu discurso na festa de abertura da AIC em Curitiba, eu disse que esperava que um dia fossemos vistos não como loucos em tentar fomentar o cinema no Brasil, mas como visionários. Eu imaginava que pudéssemos ir além, mas para onde exatamente, era difícil de saber com precisão naquele momento”.
Desafios e conquistas
Um dos maiores obstáculos, de acordo com Steven, foi lidar com a burocracia. “Algum dia ainda vou escrever um livro sobre fazer negócios no Brasil. É muito diferente dos Estados Unidos: muito mais burocracia, com leis que não apoiam os empreendedores. Fora isso, acredito que um dos maiores desafios foi ter criado a escola não como empresário ou administrador, mas como cineasta e educador. Tive muito a aprender. E o que aprendi, rapidamente, foi que precisava contratar pessoas que soubessem mais do que eu, cada um em suas áreas específicas”.
Para Flávia, enfrentar uma grande dose de riscos é um processo natural de quem busca empreender. No entanto, tudo se torna ainda mais complicado quando se trata de cultura e educação, áreas normalmente atreladas a flutuações políticas: “Mesmo que a AIC opere de forma independente, ela faz parte de um mercado audiovisual fundamentado num projeto amplo que tem alicerces nas políticas públicas”.
Ela acredita que um dos momentos mais desafiadores da história da AIC talvez seja o atual. “Temos uma indústria sólida e muito produtiva que enfrenta incertezas no campo político. Como todo mercado, confiança do consumidor, do produtor, do distribuidor, do investidor no setor é fundamental para gerar negócios e fazer a roda girar. Mas a crise não está circunscrita ao setor audiovisual, ou das artes. Ela é muito mais ampla, e afeta também o setor da educação. As pessoas não têm fôlego para investir no seu próprio futuro.”
Dito isso, se tem um setor que tem grandes chances de escapar à crise, é o audiovisual: “hoje a cultura do entretenimento é praticamente indissociável do dia-a-dia das pessoas, e o mercado só faz expandir”. Para ela, os governos precisam agir de forma responsável, implementando suas agendas de forma gradual e sustentável. “Não dá para pensar num país, qualquer que seja, que não invista recursos públicos em cultura e educação. Os governos têm a responsabilidade de fomentar a base, para que daí surja uma indústria forte, com mão de obra qualificada, que gere negócios e retorno para o país. A indústria cultural é viável e muito lucrativa — basta ver dados econômicos nacionais e internacionais”.
Ainda que as dificuldades existam, Steven acredita que uma das maiores conquistas da escola foi ter agregado tantos talentos da área audiovisual. “Nosso sucesso vem de todos os grandes cineastas que saíram da escola e de todos os relacionamentos construídos entre as pessoas. Meu segundo longa passou na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, alguns anos atrás, e em todas as festas encontrava ex-alunos do FilmWorks ou dos cursos de Roteiro e de Produção Executiva. Muitos deles hoje estão abrindo produtoras ou distribuidoras, escrevendo e dirigindo longas. Isso é muito recompensador para mim”.
Hoje é evidente o reconhecimento que a AIC tem no meio audiovisual e o fato de funcionar como uma comunidade que reúne profissionais, estudantes e amantes do audiovisual em torno de suas atividades, em São Paulo e no Rio de Janeiro, com ramificações por todo o país e até pelo mundo. “É muito bom ver a escola tomando corpo e contribuindo ativamente como player do mercado. Hoje, encontramos pessoas que passaram pela AIC em praticamente toda a cadeia produtiva do audiovisual”, diz Flávia. “Ainda mais gratificante é saber que a escola instiga corações e mentes, expressividade e criatividade, tanto na esfera individual como coletiva. A arte é transformadora. É maravilhoso saber que a AIC abre um espaço para tantas vozes”.
Aprendizado “hands on”
Permitir que os alunos coloquem a “mão na massa” é um dos maiores diferenciais dos cursos na AIC. “Somos uma escola baseada em projetos e na prática e estamos sempre aprimorando nossas metodologias. Pessoalmente, faço o possível para contratar profissionais competentes, sei que nossos coordenadores fazem o mesmo e espero o melhor tanto deles quanto de nossos alunos”, diz Steven. A AIC também é uma comunidade que constrói relações duradouras com seu público. “Temos muitos eventos gratuitos, em São Paulo e no Rio de Janeiro, porque acreditamos que é importante as pessoas nos verem como uma ‘casa do cinema’.”
A presença de profissionais do mercado audiovisual brasileiro e também da indústria cinematográfica internacional é outro destaque da instituição. “Tantas pessoas passaram pelas nossas portas, para dar aulas ou palestras… Na verdade, há poucos cineastas brasileiros que não tenham estado na AIC, de uma forma ou de outra”, diz Steven. Entre esses profissionais estão nomes como o de Lucrecia Martel, Robert McKee, Joshua Leonard, Sebastian Silva, Ana Muylaert, Lina Chamie, Daniel Rezende, Tata Amaral, Karim Aïnouz, Eduardo Coutinho e Wagner Moura.
“Somos genuinamente o que somos: uma escola e uma comunidade que cria e produz dia e noite. Respiramos audiovisual. A AIC faz parte do mercado — os professores são profissionais atuantes, os currículos foram desenvolvidos cuidadosamente seguindo nossa metodologia prática, com teoria aplicada, em parceria com os especialistas de cada área do audiovisual”, ressalta Flávia. Exemplo disso é que, em um só curso, os alunos têm a oportunidade de aprender com mais de um profissional, em suas áreas específicas. “Os currículos seguem uma jornada que é muito própria do nosso método, além das muitas oportunidades de estágio, networking, palestras, festivais e eventos extras que a escola oferece. Temos um know-how e uma comunidade construída ao longo de 15 anos, e isso nenhuma outra escola tem”.
Expandindo os horizontes
Os 15 anos da AIC marcam também a expansão da escola para outros países. “Nós acabamos de abrir uma escola nos Estados Unidos, chamada IAFA (International Academy of Film & Arts), que oferece cursos online com cineastas e artistas aclamados do mundo inteiro. Não importa onde o aluno more. É uma experiência única, porque você não precisa necessariamente estudar em uma universidade local, pode aprender pela internet com profissionais extraordinários, que normalmente nunca encontraria se não morasse em Nova York ou Los Angeles”, explica Steven.
“A AIC não traz a palavra ‘Internacional’ em seu nome gratuitamente”, acrescenta Flávia. “Desde a abertura, já trouxemos professores vindos de culturas diferentes, dando uma visão internacional ao projeto da escola. A AIC foi inaugurada com dois americanos, um polonês, um alemão, uma italiana e um canadense em seu quadro de professores. Todos os anos, trazemos cineastas internacionais para aulas e palestras. Recebemos norte-americanos, britânicos, franceses, israelenses, russos…”. Além disso, ao longo de sua existência, a escola se aproximou de maneira significativa do cinema latinoamericano – em especial, Argentina e Chile, mas também Colômbia, Peru, Uruguai e México.
Por meio das atividades em parceria com a IAFA, escola irmã da Academia Internacional de Cinema e idealizada pelos fundadores da AIC, a ideia é permitir ao público brasileiro, latino e norte-americano, a oportunidade de estudar online em aulas ao vivo — com contato direto, em turmas pequenas — com cineastas e artistas de diversas partes do mundo. Os profissionais convidados são criadores de alguns dos filmes e obras que atualmente se destacam em seus meios de difusão: no mercado, em festivais, em galerias, editoras, etc. A IAFA terá ainda um calendário de eventos e workshops presenciais em algumas cidades, que poderão ser assistidos via streaming.
Curiosidades da AIC
“Tenho uma história curiosa, sobre como encontramos o prédio da AIC em São Paulo, na Rua Gabriel dos Santos. Nós estávamos planejando a mudança de Curitiba e procurando por um lugar adequado, mas sem sucesso. Então, um corretor nos levou à casa onde hoje há uma escola de inglês, na frente de onde estamos localizados atualmente. Eu estava cansado, porque havia falado em detalhes sobre o que precisávamos e o local não atendia às nossas necessidades. Lembro que era um dia muito quente, estávamos em um carro sem ar-condicionado e esse era o último lugar que iríamos visitar, depois de uma semana de busca. Eu atravessei a rua e apoiei minha cabeça no portão do prédio que hoje é a AIC, dizendo a mim mesmo: ‘Vou ter que voltar para Curitiba de mãos vazias’. Foi então que ergui a cabeça e vi o imóvel, perguntei ao corretor se estava disponível e se poderíamos ver. Ele nos mostrou o interior e era absolutamente perfeito. Depois, mostrou a parte dos fundos e havia um estúdio já construído. Lembro-me de entrar no estúdio, encostar minhas costas na parede e pensar que iria chorar de felicidade. Não sou uma pessoa religiosa, mas aquele espaço estava destinado a nós e acho que era nosso destino estar naquela cidade.”
Steven Richter
“Quando embarcamos no avião para Curitiba, em 2004, para ir fundar a AIC, adivinha quem sentou do meu lado? O crítico Rubens Ewald Filho (que, tristemente, faleceu há pouco tempo). Eu não resisti: virei para ele e me apresentei. Disse na ‘cara dura’ que eu estava me mudando de volta para o Brasil para fundar uma escola de cinema. Ele me olhou meio incrédulo, mas simpático. Me deu o seu cartão e disse para passar um e-mail com o endereço, que ele me enviaria uma coleção de livros para dar início à nossa biblioteca. Vi o encontro como um belo sinal dos deuses do cinema. Não tive coragem de escrever para ele imediatamente — mas, depois de um tempo, ele nos encontrou, já em São Paulo, e reforçou o interesse em nos doar os livros. Dessa vez, recebemos o generoso presente do crítico que tanto fez pelo cinema do nosso país, com toda a gratidão. Em 2016, ele foi palestrante na nossa Semana de Cinema e Mercado. Em 2017, apareceu de surpresa no Filmworks Film Festival, para apreciar os filmes dos alunos. E sempre esteve por perto.”
Flávia Rocha
*Texto e pesquisa Katia Kreutz. Fotos arquivo AIC.