Isso que Não se Vê – tese de doutorado do coordenador Isaac Pipano
Isaac Pipano, coordenador acadêmico do FilmWorks RJ, professor e “fazedor de filmes”, defendeu recentemente sua tese de doutorado, Isso que não se vê – Pistas para uma pedagogia das imagens . O trabalho é resultado de um processo de quatro anos de pesquisas, viagens, oficinas, congressos e filmes, passando pelo Brasil, França e Bolívia, entre a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Université Sorbonne Nouvelle, em Paris.
Em entrevista para a comunicação da AIC, Isaac conta um pouco desse trabalho incrível:
AIC: Como você resumiria sua tese de doutorado?
Isaac Pipano: A hipótese da tese consiste na crítica ao regime da representação, que tem sua herança na filosofia platônica e foi ressignificado pelo cristianismo. Esse regime ganha consistência no cinema nos anos 1920 e 1930, quando não apenas a indústria cinematográfica, mas também os modelos narrativos, são instaurados e acabam definindo os paradigmas para toda a produção das imagens no decorrer do século XX. O fator interessante é que o regime da representação está presente para além do campo cinematográfico, à medida que cristaliza modelos que submetem as imagens e os sujeitos a certas forças e interesses político-econômicos e também pedagógicos. O interesse pelo cinema como uma ferramenta educadora foi acompanhado da ideia de que as imagens poderiam, por serem mais fáceis e assimiláveis do que o livro, formar a consciência da população, transmitindo saberes e colaborando para os projetos nacionalistas daquele período. Foi assim que o regime da representação juntou as pontas entre as imagens e a educação. Finalmente, trata-se não mais de se perguntar agora “o que é o cinema?”, mas indagar-se por que o cinema é o que é, a partir de quais interesses, no âmbito de quais disputas e jogos e por que foi sendo assim construído hegemonicamente ao longo do último século?
AIC: O que deu origem às suas pesquisas em pedagogia das imagens? Por que a escolha desse campo?
I.P.: Nosso trabalho com a pedagogia das imagens tem início na experiência das oficinas na Escola Livre de Cinema de Nova Iguaçu. Ali, passamos a entender a necessidade de compreender o cinema atrelado à educação para além do trabalho de produção e realização de filmes, mas conectado às vidas e lutas das pessoas que vivem nesses lugares. Nosso problema passou a ser menos a realização de filmes e mais o cinema como parte de processos subjetivos e a invenção de novos territórios existenciais. Em seguida, participei da idealização, ao lado de Cezar Migliorin e Luiz Garcia Vieira Jr., do projeto Inventar com a Diferença – cinema, educação e direitos humanos, em que desenvolvemos uma metodologia para o ensino de cinema voltada para a formação de professores do ensino básico no Brasil. Esse trabalho foi expandido para todos os estados brasileiros, além de países como a Argentina, Bolívia, Chile e Uruguai. O Inventar nos explicitou a necessidade de pensarmos e produzirmos novas teorias sobre a educação e as imagens.
AIC: Como foi sua jornada como pesquisador de Comunicação, ao mesmo tempo em que atuava como professor na AIC? Como uma atividade afetou a outra?
I.P.: Estar à frente de um curso técnico para realizadoras e realizadores e participar no ambiente acadêmico permitiu que eu criasse um trânsito cruzado entre ambas as esferas. Discordo amplamente da perspectiva de que a vida prática e o universo teórico são instâncias apartadas. Pelo contrário, só há pensamento numa certa pragmática da vida e a vida é o que move o pensar-agir. Nesse sentido, o trabalho teórico, o pensamento sobre as imagens, e o ensino do cinema, estão associados aos filmes que fazemos, aos processos e práticas que orientamos, de forma contínua. Certamente, não é um caminho óbvio ou fácil, porém, não parece haver outra maneira de fazê-lo, atualmente.
AIC: No que diz respeito à linguagem, você buscou uma abordagem mais narrativa e menos academicista em sua tese. Qual foi o motivo dessa escolha?
I.P.: A opção por uma escrita mais literária e menos baseada numa forma acadêmica é derivada do fato de que o combate às estruturas – institucionais, políticas, discursivas – precisa ser feito tanto no nível do conteúdo, quanto na forma. Conteúdo e forma são duas esferas indiscerníveis da produção do pensamento – seja ela a escrita, seja ela o cinema. Portanto, se a tese se constrói na crítica aos modelos, não há outra maneira de propor a escrita senão também inventando formas não estruturadas, mais libertas, menos baseadas em alguns dos paradigmas da ciência moderna e mais porosas à realidade social, assim como à dimensão subjetiva do pesquisador que está implicada na produção científica. Convocar experiências pessoais, como também a literatura e a poesia, para conectá-las à dimensão teórica, nos pareceu uma chave fundamental para a escrita da tese, sem abandonar o rigor conceitual e o desejo de manipular textos e uma bibliografia correntes nas pesquisas acadêmicas no Brasil.
AIC: O que significa sua afirmação de que o cinema e a escola são “máquinas de fazer ver e viver”?
I.P.: Quando optamos por pensar o cinema e a escola no quadro das máquinas, nos posicionamos ao lado de pensadores como Félix Guattari, que compreendem as máquinas não apenas pela sua tecnicidade. Quer dizer, não nos referimos apenas aos sistemas ópticos ou à tecnologia empregada, no caso do cinema; ou à estrutura disciplinar da escola, com seus corredores, sistemas de notas, alarmes. São máquinas, assim no plural, porque articulam uma série de elementos heterogêneos que compõem universos muito distintos. Em sua forma maquínica, o cinema não é apenas um aparato: a cada vez que se aperta um botão para filmar articula-se nesse instante uma série de máquinas que são técnicas, simbólicas, sensíveis, afetivas, econômicas. Dito de outra forma, quando uma criança ou jovem filma na escola, ela está pondo para funcionar no mesmo movimento o seu corpo-olhar associado à câmera, mas agenciando o sistema de representação do cinema, a linguagem e as teorias cinematográficas, os japoneses ou alemães que desenvolveram os softwares, as tarifas alfandegárias que fazem aquela câmera ali estar, o sistema de cor racializado que se baseia na pele branca como paradigma para a criação da imagem, o peso físico do aparato; enfim, são muitas as máquinas num mesmo movimento. Pensar o cinema e a educação no mundo contemporâneo nos parece exigir colocar essas máquinas em funcionamento. Quando estão acopladas aos corpos dos estudantes, as máquinas podem produzir inúmeros movimentos; alguns são extremamente libertários e revolucionários, têm o potencial de engajar experiências singulares que desorganizam o que está dado, criando novos territórios sensíveis, abrindo o corpo a novas possibilidades plásticas ainda não dadas ou concebidas, imaginando novos mundos. Em contraposição, a forma maquínica do cinema pode também cristalizar e sedimentar processos hierárquicos de extrema verticalidade. Não abandonar essa ambivalência do cinema pareceu fundamental à medida que pairava no ar um certo discurso que afirmava o cinema ser, a priori, uma forma artística libertadora, num sentido maravilhado e pouco tensionado. Foi assumindo a dimensão maquínica do cinema que entendemos que seria preciso enfrentar o fundamento da representação como o primado do cinema e da educação. Pois a representação estanca a força maquínica, opera por modelos ao invés de linhas, estruturas ao invés de redes, faz navios de cruzeiro ao invés de jangadas. Porém, entendemos que o gesto de enfrentar a representação não poderia se dar através da criação de modelos melhorados. Precisaríamos entender que qualquer ação é singular, exige presença e participação no território, se faz com os corpos e espaços que ali estão, maquinando com o cinema. São apenas tentativas e nada mais.
AIC: De que maneira as práticas educadoras, em conjunto com as manifestações audiovisuais, podem ser melhoradas e ampliadas no Brasil?
I.P.: Estamos vivenciando no país um momento duro de recrudescimento de muitas políticas implementadas nas duas últimas décadas, que impactaram de forma considerável os campos da cultura e da educação. Com a redução drástica dos aportes e políticas públicas sob risco, como os recentes ataques à ANCINE, ao FSA ou à Lei Rouanet, fundamentais para a estruturação da cadeia econômica do audiovisual, da cultura e da educação, como um tecido conjugado, assim como projetos perniciosos como o Escola sem Partido; cremos que cabe a nós, como sociedade, pressionarmos o governo para garantir a manutenção de certas pautas. Porém, como temos visto, isso não será o bastante, o que nos leva a pensar em novas formas coletivas de resistência não dependentes ou subordinadas às dinâmicas políticas institucionais, que são cada vez mais frágeis e mudam ao sabor do vento. Nesse sentido, uma atenção à micropolítica, aos processos menores, de grupos, tem sido fundamental. Talvez o enfrentamento se dê mais fortemente em tais campos do que propriamente nas esferas institucionais, dominadas atualmente pela incompetência política e por um projeto que visa à clara degeneração das esferas da educação e do audiovisual de direito público.
*Entrevista: katia Kreutz