Os filmes de Sofia Coppola
“Essa é a maneira como trabalho: eu tento imaginar o que gostaria de ver.”
Sofia Carmina Coppola, vencedora do Oscar de melhor roteiro original por Encontros e Desencontros / Lost in Translation (2003), poderia ser “apenas” a filha de um cineasta famoso – Francis Ford Coppola (de clássicos como O Poderoso Chefão / The Godfather e Apocalypse Now). No entanto, ela resolveu trilhar seu próprio caminho como roteirista e diretora, consagrando-se como uma artista de estilo marcante, além de muita sensibilidade e ousadia.
A estreia de Sofia Coppola no cinema se deu como atriz, em O Poderoso Chefão (1972). Alguns anos depois ela retornou a esse universo, interpretando a filha de Michael Corleone em O Poderoso Chefão – Parte III (1990), uma performance que foi muito criticada. A partir de então, Sofia passou a se dedicar aos bastidores do fazer cinematográfico, tendo iniciado sua carreira na direção com o aclamado As Virgens Suicidas / The Virgin Suicides (1999). O longa também deu início à parceria da diretora com a atriz Kirsten Dunst, que estrela vários de seus filmes.
Em 2004, Sofia Coppola se tornou a terceira mulher na história do cinema a ser indicada a uma estatueta de melhor direção, por Encontros e Desencontros. Isso impulsionou sua carreira, já que o reconhecimento permitiu à cineasta realizar o ambicioso drama histórico Maria Antonieta / Marie Antoinette (2006). Conforme descreveu a crítica e pesquisadora Samantha Brasil, o filme “apresenta uma subversão formal não apenas por retratar uma figura controversa sob uma ótica pouco convencional, mas principalmente por mesclar símbolos atuais e contemporâneos num drama de época”.
Já em 2010, com Um Lugar Qualquer / Somewhere, uma história que traz elementos da própria relação da diretora com Hollywood, Sofia Coppola se tornou a primeira mulher norte-americana a receber um Leão de Ouro, o principal prêmio do Festival de Veneza. Em 2013, ela dirigiu Bling Ring: A Gangue de Hollywood / The Bling Ring, baseado em uma história real. Finalmente, em 2017, retornou às telas com o drama com toques de suspense O Estranho que Nós Amamos, filme pelo qual recebeu o prêmio de melhor direção no Festival de Cannes – tornando-se a segunda mulher na história do festival a conquistar essa premiação. Atualmente, Sofia trabalha na pré-produção do longa On The Rocks, sobre uma filha que tenta se reconectar com o pai, filme que terá no elenco Rashida Jones e Bill Murray (outro colaborador frequente da cineasta).
Ressonância emocional
Uma das características dos roteiros de Sofia Coppola está no fato de ela buscar histórias com as quais se conecte emocionalmente, em nível pessoal. Três dos principais filmes da diretora (As Virgens Suicidas, Encontros e Desencontros e Maria Antonieta) abordam temas relacionados a questões de identidade e a certos ritos de passagem, como a fase da adolescência para a vida adulta, além de transmitirem uma sensação de ingenuidade e de incerteza com relação ao futuro. A melancolia e a efemeridade dos relacionamentos também estão muito presentes em sua linguagem narrativa.
De acordo com o jornalista e crítico de cinema Filippo Pitanga, professor da Academia Internacional de Cinema (AIC), o principal diferencial narrativo de Sofia Coppola está em seu interesse em explorar o cotidiano mais rotineiro, partindo de uma estrutura externa às suas personagens e chegando à essência mais intimista e peculiar das protagonistas – em geral, mulheres. “Um perfeito exemplo disso é que, mesmo em se tratando de personagens masculinos, eles são desenvolvidos na maior parte das vezes com suas vulnerabilidades expostas, de uma bolha injustamente construída com regras para favorecê-los, ao ponto de eles próprios não saberem mais o que fazer com o privilégio indevido. A partir da demolição de uma moral arcaica é que as mulheres de seus filmes podem romper a barreira social como aríetes, justamente por caminharem sua ‘jornada da heroína’ por fora da tangente”, explica.
Para Pitanga, o fato de dirigir seus filmes afeta a maneira como Sofia Coppola escreve os roteiros. “Essa é uma condição inerente às diretoras mulheres e a qualquer cinema realizado como um olhar opositivo ao mercado dominante, como costumam ser as narrativas contra hegemônicas advindas de recortes afirmativos (como os de gênero, raça, classe, sexualidade e etc)”. O professor também ressalta a influência do pai de Sofia, Francis Ford Coppola, em seu trabalho. “Se dependesse do pai, a princípio, ela teria se tornado atriz, não diretora. Ela até chegou a atuar, a contragosto, quando muito jovem, em alguns de seus filmes. Mas era atrás das câmeras que Sofia de fato gostava de trabalhar. Para tanto, seguiu uma trajetória completamente independente e personalística”.
Segundo Pitanga, no início da carreira de Sofia Coppola, algumas pessoas que pesquisaram e estudaram seu cinema tentaram fazer correlações com os épicos de Francis Ford Coppola, como se fossem referência para certa curiosidade antropológica da cineasta (assim como seu pai) sobre a formação cultural de núcleos familiares em nichos sociais. “Porém, a forma de explorar essa curiosidade de ambos é completamente diferente. A aplicação do tempo costurado em narrativas imagéticas também funciona de forma diferente, cabendo a Sofia inovar a inflexão temporal e priorizar a subjetividade do espectador-observador nas camadas de história que se encobrem por sob as cenas. Ela não mostra nem revela o interior de suas personagens facilmente, reservando memórias e experiências que só podem ser complementadas no extracampo. Isso sem falar numa ferrenha crítica ao próprio sistema contemporâneo de uma nova Hollywood que o pai ajudou a formar, como em Um Lugar Qualquer”.
Por onde começar
Para quem não conhece o trabalho de Sofia Coppola, uma forma de mergulhar nas obras da cineasta é por seu primeiro longa-metragem, As Virgens Suicidas. Segundo Filippo Pitanga, o filme é um excelente ponto de partida, por conseguir referenciar várias características em formação para seu amadurecimento cinematográfico, não obstante a visceralidade sem concessões que caminha de mãos dadas com a autenticidade. “Mas vale dizer que os curtas-metragens de Sofia, como Lick The Star (1998), já prenunciavam seu talento e a relação construída entre as complexas personagens femininas, como fio condutor da dramaturgia que vemos na tela. O ócio criativo, o magnetismo excêntrico, a sororidade e a lógica interna desses grupos de mulheres serão elementos a criar, de forma ímpar, um microcosmos particular dentro de todas as suas narrativas”, completa o professor.
Embora Pitanga destaque Encontros e Desencontros como um longa paradigmático para a carreira da diretora autoral que Sofia Coppola se tornou, a obra mais marcante da cineasta em sua opinião ainda é o longa de estreia. “Vejo As Virgens Suicidas como um dos filmes que mais me chocou e impregnou meu imaginário, desde a primeira vez que assisti. Como se eu também fosse um dos meninos desajustados que moravam nas casas vizinhas à das personagens, e, tão fascinado quanto perplexo, ansiasse por me juntar à mudança que desejamos para um mundo tão injusto que legou tal destino trágico às protagonistas”. O professor acrescenta que a obra permanece tão atual que ainda permeia a realidade em diversas versões de opressão a serem combatidas, além de gerar novos filmes que “bebem da mesma fonte”, como o longa franco-tunisiano Cinco Graças / Mustang (2015), dirigido pela cineasta Deniz Gamze Ergüven.
Sobre As Virgens Suicidas, Pitanga destaca ainda uma citação da crítica e pesquisadora Samantha Brasil, em entrevista ao jornal Nexo*: “O primeiro longa-metragem de Sofia Coppola é o mais simbólico de uma alegoria que se faz presente na obra da diretora, segundo Samantha Brasil: o aprisionamento social e moral de que sofrem as mulheres. O roteiro adaptado do romance homônimo de Jeffrey Eugenides se debruça sobre uma família de cinco irmãs, nos anos 1970, que ‘encontram na fatalidade a única forma de resistir a um mundo de restrições e interdições insuportáveis’, diz Brasil. ‘Coppola trabalha temas como suicídio e machismo estrutural de forma lírica, marca que vai sendo consolidada em seus próximos trabalhos’.”
O estilo de direção de Sofia Coppola
“Retratos que se movem lentamente com paletas emocionais agridoces”. Assim foi definido pela Interview Magazine o estilo da diretora. Sofia Coppola gosta de utilizar aspectos visuais que expressam um pouco do que os personagens estão sentindo em determinados momentos, frequentemente em uma atmosfera que remete a sonhos. O uso da película na cinematografia dos filmes reforça esse clima surreal (Bling Ring: A Gangue de Hollywood foi o único longa da diretora gravado em câmeras digitais).
Certamente, as experiências anteriores da cineasta na indústria fashion ajudaram a moldar seu apurado senso estético. Além disso, o fato de ter crescido em uma prestigiada família de Hollywood exerceu forte influência sobre seu trabalho – muitas vezes de forma negativa, já que Sofia foi acusada de ter obtido sucesso não por mérito próprio, mas privilégio.
Toda a sua filmografia foi produzida pela Zoetrope, produtora de Francis Ford Coppola (que afirma não interferir nos filmes da filha, embora faça sugestões). Ela tentou fugir de produções de grandes orçamentos, que limitassem a liberdade criativa e artística – algo que Sofia preza muito em suas obras. Mesmo com alguns elementos estéticos de filmes adolescentes hollywoodianos e trilhas sonoras contemporâneas, a diretora mantém uma atmosfera intimista, inspirada pelo cinema autoral europeu.
Lidando com acusações de nepotismo e o machismo da indústria com relação a cineastas mulheres, Sofia Coppola foi capaz de provar que seus filmes não são apenas peças decorativas sem substância, mas explorações delicadas da natureza humana. Ela frequentemente se diz orgulhosa de mostrar o ponto de vista feminino em seus filmes, valorizando equipes formadas por mulheres e mantendo sua carreira em um circuito independente, longe do universo dos blockbusters. Em duas décadas de trabalho, mostrou-se uma diretora que sabe o que quer: um cinema que instigue a imaginação e os sentidos.
* Fonte: https://www.nexojornal.com.br/expresso/2017/05/31/Os-filmes-essenci ais-de-Sofia-Coppola-segundo-esta-pesquisadora-de-cinema
*Texto Katia Kreutz e fotos Internet