Cinema Soviético
O que foi o movimento cinematográfico, suas principais características estéticas, filmes e cineastas mais importantes e seu legado para o cinema.
“Eu sou um olho. Eu sou um olho mecânico. Eu, uma máquina, estou mostrando a você um mundo que apenas eu posso ver.” – Dziga Vertov
O que foi o movimento
O cinema soviético despontou junto com a Revolução de Outubro de 1917 na Rússia, território que então passou a se chamar União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O movimento trouxe conceitos revolucionários, em especial no que diz respeito à montagem cinematográfica, estendendo-se aproximadamente até os anos 1950 (período que também é referido como a Era Stalin).
Entre as contribuições dos cineastas soviéticos estão não apenas filmes inovadores que ajudaram a estabelecer a própria linguagem do cinema, com técnicas de edição que permanecem atuais até os dias de hoje, como valiosos escritos que fundamentam as teorias e práticas cinematográficas – já que muitos dos realizadores soviéticos eram também teóricos.
Outro aspecto importante desse movimento foi a proposta de utilizar o cinema não somente como arte ou entretenimento, mas como uma poderosa ferramenta política. Embora os cineastas tenham ousado nas experimentações artísticas, é inegável que a União Soviética tinha como projeto político a aplicação dos meios de comunicação para chegar à classe trabalhadora. Portanto, políticos, intelectuais e artistas vanguardistas deveriam demonstrar esse compromisso com as massas por meio de seus filmes.
Um pouco de história
Conforme explica o jornalista e crítico de cinema Filippo Pitanga, professor da Academia Internacional de Cinema (AIC), o cinema soviético nasceu como uma ferramenta de politização na URSS, inclusive com subsídios do governo. “Não era apenas uma forma de arte, como de exercício da cultura para a educação, sendo dado nas escolas e produzido de modo informativo também”, argumenta. Para o professor, esse tipo de fomento público à cultura é algo que deveria ser resgatado e revalorizado na atualidade.
Naquela época, a produção de filmes e a maneira como eles eram feitos era algo de extrema importância para as lideranças soviéticas. Histórias que se voltassem a indivíduos, ao invés de falar às massas, eram consideradas contrarrevolucionárias. A coletivização do fazer cinematográfico se tornou um elemento central para a realização programática do Estado comunista. A teoria que ficou conhecida como Kino-glaz (cinema-olho, ou cine-olho), cujo filme de Dziga Vertov de mesmo nome foi o maior representante, buscava desmantelar as noções burguesas da criação artística. O trabalho, o movimento e o cotidiano dos cidadãos comuns da União Soviética compunham o repertório desses cineastas.
O período que se seguiu à revolução social-democrata de 1917, a qual derrubou a monarquia czarista na Rússia, foi chamado de Construtivismo Russo. Tratava-se de uma iniciativa pró-socialista, fruto de uma era de revoluções populares, defendendo que o cinema não podia apenas partir de abstrações distantes do povo, mas sim do dia a dia das pessoas. “Não à toa, uma das maiores contribuições específicas trazida pelos cineastas construtivistas foi o fato de seus estudos sobre cinema terem sido publicados e distribuídos como material bibliográfico de ensino, como uma instituição acadêmica de cinema que servia a várias outras áreas”, ressalta Pitanga. Esse fomento ao estudo da semiótica cinematográfica impulsionou vários avanços no que diz respeito à compreensão da sétima arte como linguagem, especialmente em relação à montagem.
De fato, as teorias dos cineastas soviéticos sobre montagem estabeleceram conceitos fundamentais para o cinema mundial, que contribuíram para o entendimento e a criação de uma sintaxe cinematográfica baseada na edição.
Embora os realizadores discordassem em algumas de suas visões a respeito da montagem, o cineasta e teórico Sergei Eisenstein definiu um aspecto que todos tinham em comum, ao escrever, em Uma Abordagem Dialética da Forma Fílmica, que a montagem era o “nervo” do cinema.
Principais características estéticas
As teorias desenvolvidas pelos soviéticos ajudaram a estabelecer as bases da montagem no cinema. Para esse grupo de cineastas, uma série de imagens conectadas permitia que ideias complexas fossem extraídas de uma sequência. Uma vez colocadas juntas, essas imagens seriam capazes de construir todo o poder ideológico e intelectual de um filme. Em outras palavras, eles acreditavam que a força de uma obra cinematográfica estaria mais na montagem dos planos do que em seu conteúdo. Muitos diretores contemporâneos, assim como os soviéticos, ainda defendem que a montagem é o que define um filme, diferenciando o cinema das demais manifestações audiovisuais.
Trabalhando dentro do projeto de expansão da União Soviética, os realizadores não se interessavam tanto pelo sentido do filme, mas pela aplicação de conceitos revolucionários no modo de produção. Nesse sentido, as teorias serviam para reiterar esses ideais, disseminando as causas do comunismo e do proletariado. Por isso, a maior parte dos cineastas do movimento optou pelo chamado “cinema verdade”, uma antítese do cinema clássico romântico e dos dramas psicológicos que tentavam “dirigir” o olhar do espectador.
De acordo com Pitanga, a proposta era registrar uma filmagem concreta da vida cotidiana, na qual a lente da câmera não fosse “contaminada”, ou seja, que tivesse a mínima interferência do observador e usasse a montagem sem nenhuma construção artificial da ligação entre os planos, como algo que pudesse dar asas para novos sentidos à realidade concreta filmada (um conceito que se tornaria tão importante para o cinema e para o documentário que, mais tarde, fundamentaria o desenvolvimento do chamado cinema verité).
O manifesto Kino-glaz (cine-olho), escrito por Dziga Vertov, pregava o fim da cinematografia, “para que a arte do cinema possa viver”. Ele criticava o modelo dos filmes realizados à época, focados no romantismo e na teatralização, por sua estagnação e pela necessidade de se retomar a função social da prática cinematográfica, devolvendo à arte sua relevância. O filme deveria mostrar a realidade como ela acontecia de fato, ao invés de ser uma representação de objetos que nunca capturava ou sequer se aproximava da vida propriamente dita. Nas palavras de Vertov: “Eu sou um olho. Eu sou um olho mecânico. Eu, uma máquina, estou mostrando a você um mundo que apenas eu posso ver.” Afinal, o olho humano não poderia ser aprimorado à perfeição, mas a câmera sim. Desse modo, o cinema seria libertado das limitações humanas e a montagem poderia, finalmente, expressar-se em sua plenitude.
Principais cineastas e filmes
Um dos maiores expoentes do cinema soviético, Sergei Eisenstein não atuou somente como diretor cinematográfico, mas foi também o responsável por inúmeros artigos teóricos ligados à montagem, que servem como base para estudos nessa área até os dias de hoje. “Ele criou diversas teorias, entre as quais a da montagem intelectual, que consiste em justapor imagens para criar um sentido ideológico e de associação”, afirma Lucilene Pizoquero, pesquisadora do Cinema Brasileiro e professora da AIC. Esse tipo de montagem buscava apresentar as coisas não como elas eram, mas em suas relações com a sociedade, criando conceitos a partir de combinações de imagens que separadamente não possuíam sentido – conflito este que poderia existir entre diferentes planos ou até mesmo dentro de um mesmo plano.
Essa teoria foi aplicada no primeiro longa-metragem silencioso de Eisenstein, A Greve (1925). “Em uma das sequências, na qual acontece uma reunião entre patrões para decidir sobre as reivindicações trabalhistas, há uma analogia entre os trabalhadores e o limão. A cena apresenta um dos patrões espremendo um limão em um copo, antecipando os massacres finais em que os trabalhadores são sufocados por jatos d’água lançados pela polícia”, aponta Lucilene. Outro exemplo do mesmo filme está na cena em que um plano dos operários sendo atacados é seguido pela imagem de animais sendo sacrificados, criando uma metáfora de que os cidadãos eram tratados como gado – um significado que não existia nos planos individualmente, mas que surgia em sua justaposição.
Para Pitanga, a maior contribuição desse cineasta para a montagem tem nome e conceito bem definidos: a montagem dialética. “Eisenstein recebeu uma educação bastante cosmopolita, pôde viajar muito e estudar várias culturas, especialmente quando serviu no exército vermelho e participou da Revolução Bolchevique e da Revolução de Outubro”, comenta o professor. Posteriormente, o cineasta entrou em contato com a cultura japonesa, com seus ideogramas e o teatro Kabuki, os quais tiveram importância crucial em seus estudos pictóricos de imagem e de linguagem cinematográfica.
“O ideograma japonês é estudado como uma verdadeira filosofia no mundo, uma vez que dominar seu desenho de traços, cuja sobreposição pode formar novas palavras ou sentenças, é ao mesmo tempo estudar a sobreposição de significados e símbolos”, destaca Pitanga. Por isso, muito da montagem de Eisenstein veio desse conceito de sobreposição ou sequenciamento de significados. “Para o cineasta, a montagem dialética no cinema tentava entender que, se o filme é reflexo do social, a contraposição de imagens da sociedade poderia ser mais forte em criar uma nova resultante do que sua mera sequência ordenada. Então, ele usava opostos ou metáforas que poderiam nada ter a ver com a cena, a princípio, mas cuja interpretação do espectador contrapondo os significantes engrandeceria seu significado.”
Assim, embora não seja o inventor da montagem, Eisenstein foi responsável por codificar seus usos, tanto na teoria quanto na prática cinematográfica. Ele defendia que a ideia de montagem surgia da colisão de planos independentes e foi capaz de vislumbrar a natureza interna das imagens, utilizando-as como ferramentas revolucionárias. Inicialmente, seu foco esteve em retratar a luta política do proletariado, seguindo então para um período no qual abordou a capacidade das massas de se revoltarem.
Outro cineasta soviético extremamente importante foi Dziga Vertov. Em 1924, ele lançou o manifesto Kino-glaz, que pregava a utilização de tomadas mais rápidas e da câmera móvel. “Entende-se por ‘cine-olho’ o olho que vê não como microscópio ou telescópio, mas a possibilidade de ver sem fronteiras ou distâncias, abrangendo todos os meios e as invenções cinematográficas, todos os processos e métodos”, explica Lucilene. O cinema, de acordo com esses ideais, serviria para descobrir a verdade, a “cine-verdade” (kino-pravda), ou seja, pessoas sem máscaras ou maquiagem, captadas em momentos nos quais não estivessem representando, com seus pensamentos desnudados pela câmera. “Cine-olho é tornar visível o invisível, iluminar a escuridão, demarcar o que está mascarado, transformar o que é encenado em não encenado”, completa a professora.
Segundo Pitanga, é importante também contextualizar Vertov como um cineasta cujo pensamento se encontrava em evolução. Ele iniciou sua carreira estudando música, depois medicina (especificamente, neurolinguística), fazendo experimentações com colagens de som e com a percepção humana, em uma clara predisposição para a desconexão da imagem e do som, do significante e significado. “Quando descobriu o cinema em sua vida, Vertov entendeu que a lente da câmera era o objeto mais revolucionário com que poderia evoluir esse estudo das percepções; pois, para ele, a câmera era uma máquina perfeita, à parte das falhas do ser humano, e poderia captar coisas que nosso olhar talvez estivesse por demais viciado para captar”, afirma o professor.
Entre outros cineastas soviéticos que também foram significativos para esse período está Vsevolod Pudovkin, responsável por desenvolver uma nova teoria da montagem que se distanciou da clássica hollywoodiana. Conforme escreveu o cineasta: “Os elementos da realidade estão fixados nesses pedaços; combinando-os na sequência relacionada, encurtando-os ou aumentando-os de acordo com seu desejo, o diretor cria seu próprio tempo e espaço ‘fílmico’. Ele não adapta a realidade, mas a utiliza para criar uma nova; e o mais importante e característico aspecto do projeto é que nele as leis do espaço e do tempo invariáveis e inescapáveis da realidade se transformam em algo manipulável e obediente. O filme cria uma nova realidade própria a ele mesmo.”
Os conceitos de Pudovkin tinham como princípio a ideia de que a fragmentação criaria força e ultrapassaria a característica da cena filmada. “Ele defendia que o plano é como um tijolo e a construção fílmica ordena esses tijolos para gerar o resultado desejado. Pudovkin faz uma analogia do diretor cinematográfico com o poeta que utiliza palavras para criar uma nova percepção da realidade; mas o diretor usa o plano no lugar das palavras”, observa Lucilene.
A ideia da sequencialidade dos planos foi desenvolvida por Pudovkin em parceria com o teórico Lev Kulechov. Juntos, eles realizaram diversas experiências cinematográficas, entre elas a de justapor uma mesma imagem com diferentes planos sucessivos, produzindo resultados diversos. Uma dessas experiências foi realizada com o ator Ivan Mosjoukine, tendo sido batizada como “efeito Kulechov”. “Lev Kuleshov deu nome ao efeito que legou para a história da sétima arte, que consistia na sequência de duas imagens a gerar um terceiro significado a partir delas”, completa Pitanga.
O professor ressalta que os cineastas construtivistas soviéticos raramente atuavam sozinhos. “Vertov trabalhou de perto com sua família, também formada por cineastas. Para quem não credita mulheres na direção durante o Construtivismo Russo, é um absurdo esquecer de Elizaveta Svilova (esposa de Vertov), que foi a primeira pessoa a registrar um filme/documentário das pessoas liberadas do campo de concentração nazista.”
Pitanga destaca ainda a atuação de outras mulheres cineastas, que marcaram época tanto no período do Construtivismo quanto depois dele, como a também atriz Yuliya Solntseva (que foi a primeira mulher a ganhar o prêmio de direção em Cannes por Chronicle of Flaming Years, em 1961); Esfir Shub (também conhecida como Esther Shub), que foi pioneira dos filmes de compilação no documentário, como A Queda da Dinastia dos Romanov; Larisa Shepitko, que realizou uma das obras-primas mais aclamadas da história do cinema, Wings (1966), sobre uma das mulheres mais famosas a pilotar aviões de guerra na União Soviética; e Kira Muratova, diretora que nasceu na Moldávia (que fazia parte da União Soviética até 1991) e realizou seus filmes na Ucrânia (também parte da URSS até 1991), entre eles obras premiadas como Síndrome Astênica.
Legado para o cinema
Os cineastas russos influenciaram a sétima arte do mundo inteiro, promovendo grandes avanços do estudo teórico do cinema. Seus escritos ainda são utilizados em instituições de ensino de inúmeros países. “Para os brasileiros, especificamente, as regras de montagem e a preocupação social incidiram profundamente em toda uma criação de linguagem que desembocaria no Cinema Novo, com a fusão de documentário e ficção, ou docuficção, e a conquista e ocupação do imaginário social nas diversas territorialidades brasileiras nunca antes visitadas pelo cinema”, comenta Pitanga.
Além disso, a montagem russa influenciou desde o norte-americano Alfred Hitchcock (que aplicou em seus filmes os princípios do “efeito Kulechov”), até os vanguardistas franceses, como Jean-Luc Godard. Prova disso foi que, em 1968, Godard e Jean-Pierre Gorin criaram o coletivo Dziga Vertov, com o propósito de realizar filmes políticos desde a produção até a finalização. “Embora não se possa considerar o movimento chamado Cinema Novo como algo coeso e homogêneo, o cinema brasileiro, em especial Glauber Rocha, utilizou os princípios ideológicos para formar sua teoria. Se fizermos um paralelo entre o período da Revolução Russa (1917) e o período de formação do Cinema Novo (1962), vemos que ambos possuem o mesmo propósito: um país com uma população pouco letrada, em que o cinema era instrumento pedagógico e ideológico da formação cultural”, acrescenta Lucilene.
Portanto, o legado dos cineastas soviéticos permanece no cinema contemporâneo em diversos níveis – comercialmente, politicamente, academicamente. As técnicas de montagem aplicadas durante esse movimento ainda podem ser encontradas na maioria dos filmes atuais, sejam eles de ficção ou documentário. A própria teoria do cinema se fundamenta nas análises soviéticas, as quais colaboraram para que uma “gramática” da arte cinematográfica pudesse ser escrita. A maneira como vemos e compreendemos os filmes não seria a mesma sem essas contribuições, principalmente no que diz respeito ao papel do conflito dentro da montagem. Afinal, citando Eisenstein: “É tarefa da arte revelar as contradições da existência.”
Eisenstein e Vertov: os clássicos
Conheça dois filmes essenciais dos primórdios do cinema soviético:
- O Encouraçado Potemkin (1925)
Esse é o filme que simplesmente não pode faltar quando se fala de cinema soviético ou russo. O longa silencioso de Sergei Eisenstein é considerado, ainda hoje, como um dos mais arrebatadores da história do cinema. A história retrata o trágico motim dos marinheiros do navio Potemkin contra os soldados czaristas, um levante que culminaria na Revolução de 1917. Repleto de tensão e de momentos extremamente dramáticos, inclusive a famosa sequência da “escadaria de Odessa”, é um dos filmes mais memoráveis do movimento; que aplicou, na prática, as teorias da montagem de Eisenstein.
- Um Homem com uma Câmera (1929)
O filme de Dziga Vertov, também silencioso (embora hoje seja encontrado em versões acompanhadas de música), consegue transformar em narrativa uma série de imagens aparentemente desconexas, sem atores, diálogos ou roteiro. Extremamente atual e envolvente em sua dinâmica, Vertov usa técnicas inovadoras de câmera e edição – inclusive jump cuts e telas divididas – para capturar, de maneira totalmente experimental, 24 horas do cotidiano da vida em uma cidade soviética. O olhar documental do cineasta brilha em sua observação dos cidadãos, seja em seus momentos de trabalho ou de lazer, surpreendendo o espectador com sua visão da realidade pelas lentes de uma câmera.
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*Texto e pesquisa: Katia Kreutz.
**Foto Destaque: Cena de “Um homem com uma câmera”, um filme de Dziga Vertov.