Marçal Aquino fala sobre a arte de contar histórias na AIC
*Por Katia Kreutz, Foto Yuri Pinheiro
A 12a Semana de Orientação na Academia Internacional de Cinema se encerra em São Paulo com um sujeito que, muito humildemente, diz não entender nada de cinema, mas acaba dando uma verdadeira aula sobre a arte de contar histórias. O tal sujeito é Marçal Aquino – escritor, jornalista e roteirista de filmes importantes para a cinematografia nacional, como o “Os Matadores”, “Ação Entre Amigos”, “O Invasor” e “O Cheiro do Ralo”.
Marçal explica o motivo a que veio: contar um pouco da sua experiência, como é que virou roteirista. “Sou um grande cinéfilo, mas nunca quis isso como profissão. Eu achava que, como atividade economicamente inviável, já bastava a literatura”, brinca, dizendo que quando acaba um filme brasileiro geralmente não sobem créditos, mas débitos. Entretanto, mesmo tendo a consciência de que essa é uma atividade difícil, cara, demorada e, sobretudo, coletiva, alguns caminhos curiosos acabaram levando as histórias desse escritor das páginas para as telas.
Dos quadrinhos à literatura
Marçal Aquino nasceu em Amparo, interior de São Paulo, uma cidade histórica do ciclo de café, que foi cenário para muitos filmes e novelas. De certa maneira, teve contato com essa “gente do cinema” desde garoto. Por isso mesmo, nunca quis se meter muito nessa área, embora sempre tenha gostado de assistir filmes.
“Eu sou um contador de histórias”, define o escritor. Tendo crescido em uma fazenda, sem televisão, o hábito de escrever surgiu porque era comum as pessoas se reunirem para conversar, à noite. Ele reparava que as histórias iam mudando, conforme eram contadas várias vezes. “Quem está contando percebe o efeito que as cenas têm. Uma vizinha não chega para a outra e diz: morreu fulano. Ela começa assim: sabe quem morreu? Isso cria uma expectativa narrativa no ouvinte.”
Originalmente, Marçal gostava de desenhar histórias em quadrinhos. Aos 14 anos, começou a se interessar por literatura e descobriu que essa era uma forma de se expressar muito mais completa do que os gibis ou mesmo os filmes, porque a imaginação do leitor trabalha livre, sem nenhum apoio visual.
“Ali, eu virei escritor. Mas entendi, logo de cara, que isso não é profissão no Brasil”, lembra. Como precisava fazer algo que o possibilitasse escrever – o que, afinal era a coisa que ele mais gostava – Marçal percebeu que o jornalismo seria a escolha mais lógica. Trabalhou como repórter, redator, editor. E a experiência de escrever para o caderno policial do extinto Jornal da Tarde marcou também sua literatura.
Mas ele reforça: seu negócio mesmo é escrever livros. Todo o resto, o escritor faz com prazer, porque são coisas ligadas à literatura, mas sempre sem grandes pretensões. “Na verdade, minha única especialidade é saber ouvir a conversa alheia, pois eu tenho muita curiosidade pelo outro. Eu só escrevo porque presto atenção nas outras pessoas”, explica.
Parceria pra vida toda
E como o cinema entrou na vida desse escritor que nunca pensou em ser roteirista? Em 1991, Marçal Aquino publicou um livro de contos, “As Fomes de Setembro”. O cineasta Beto Brant, ainda em sua fase de curtas-metragens, quis transformar um dos contos desse livro num filme. Ele procurou a editora, que não tinha os direitos, e por isso acabou abordando o escritor. “Quando me conheceu, o Beto se surpreendeu com duas coisas: primeiro, que eu não sou o um velho de 80 anos, que ele imaginava que eu era pelos meus escritos; segundo, que eu sabia muito sobre cinema”, conta Marçal.
Os dois começaram uma amizade, um diálogo criativo. O curta não saiu, mas pouco tempo depois Beto quis fazer um longa (“Matadores”) e acabou usando outro conto de Marçal como inspiração. Contudo, os roteiristas contratados para o filme não estavam conseguindo resolver o final da história. “Era uma novela que publiquei como conto. Aí contei para o Beto, brincando, o que eu faria, se tivesse levado o livro até o fim. Na hora, ele me chamou pra ajudar nisso.”
Marçal não era um incauto no mundo cinematográfico. Ele teve aulas de roteiro na faculdade de jornalismo, costumava até ler roteiros, só que nunca havia escrito nenhum. “Depois que mexi no ‘Matadores’, virei o roteirista dos filmes do Beto. Tanto que eu nem tinha interesse em trabalhar com outros diretores”, ressalta. Acabou trabalhando com grandes nomes, como Heitor Dhalia e Marco Ricca, e hoje ganha a vida como roteirista e autor de TV. “Minha vida se transformou depois desse encontro com o Beto, mas foi ele que inventou que eu era roteirista.”
Mercado aquecido
Mesmo que tudo pareça ter acontecido de maneira acidental na carreira de Marçal Aquino, uma coisa ele afirma com convicção: existe um bom mercado, atualmente, para trabalhar com roteiro no Brasil. “Hoje em dia, os roteiristas mais criativos estão nos seriados, porque é onde está o dinheiro. No cinema, o processo pode levar até cinco anos, exige uma carga de foco que é quase desencorajadora”, comenta.
Contudo, a internet e os serviços de streaming abriram uma série de oportunidades, o que é muito positivo. Para Marçal, isso é uma evolução. A própria Rede Globo (onde o roteirista participou da criação de seriados como “Carcereiros” e “Supermax”) está atenta a esses novos formatos, pois é esse tipo de material que o público jovem tem assistido. Mas, apesar do sucesso profissional, ele acredita que trabalhar apenas por dinheiro não traz realização. “Eu sempre fui atrás dos sonhos, de diretores que estavam se propondo a fazer algo diferente”, defende.
“Quando comecei, e lá se vão mais de vinte anos, na retomada do cinema brasileiro, o roteirista era uma figura vista no mínimo com desconfiança”, continua. Marçal conta que, na época, muitos diretores sequer tinham roteirista, era aquela história de uma ideia na cabeça e uma câmera na mão… “Então não era uma profissão que você quisesse abraçar.”
Não apenas por ser roteirista, Marçal acredita na necessidade de se ter um roteiro na construção de um filme. Ele vê esse trabalho como a pedra fundamental. Hoje, a primeira coisa que se pede antes de começar a aprovação de um projeto em um edital ou lei de incentivo é o roteiro. Essas mudanças ajudaram a valorizar um pouco mais a atividade.
O escritor vê essa mudança de mentalidade como algo maravilhoso. “Agora se compreende a importância do roteiro. Tirando o Beto, que é meu parceiro, eu já dialoguei com cineastas que estavam me contratando simplesmente para resolver problemas”, conta. Para ele, o trabalho precisa ser desmistificado e visto como outro qualquer.
Método e linguagem
“Escrevendo literatura, eu tenho meu método, desenvolvido desde os 14 anos. É minha maneira de trabalhar. Acontece que o roteiro não tem isso”, explica Marçal.
A primeira diferença está no fato de ser um trabalho coletivo, que depende de uma série de questões e de profissionais. “Eu falo que é igual suruba: precisa de mais gente pra fazer”, brinca. Para ele, esse processo de estar integrado em uma coletividade é fascinante, porque a literatura é um trabalho solitário, no qual as decisões ficam completamente a cargo do autor. Por outro lado, existe também um nível de insegurança muito maior.
Além disso, quando se trata de um roteiro, o que está no papel nunca não é a obra final. O fato interessante é que Marçal foi descobrindo essas particularidades e aperfeiçoando suas técnicas na prática. “Eu ainda estou aprendendo a ser roteirista. Estou na televisão, escrevo roteiros diariamente, mas acho que sei apenas atender aos desejos de determinado diretor”, afirma.
Quando ingressou no cinema, Marçal conhecia os códigos, tanto da linguagem literária quando da cinematográfica, mas sua maior dificuldade foi entender que nem tudo o que se coloca no roteiro é filmável. “O que eu quiser colocar na literatura, vai funcionar na cabeça do meu leitor. Eu não preciso de nenhum aparato, somente de um leitor com imaginação.”
Nesse contexto, escrever um bom roteiro acaba sendo, basicamente, a tarefa de descrever algo, manifestar intenções e criar diálogos verossímeis. Na transição para o audiovisual, o que está escrito precisa ter um enorme poder de convencimento, porque ninguém lê roteiros como lê literatura. “Se eu escrever num roteiro: ‘Maria sai de casa’, e der para cinco diretores diferentes, cada um vai gravar de um jeito. É o diretor que, de fato, imagina o filme.”
Marçal conta que não tem vontade de dirigir um filme e que nunca sequer passou por sua cabeça falar para um diretor o que ele deveria fazer com sua história. “Eu me reservo o direito de não gostar, mas é preciso ter esse desprendimento. No cinema não existe a vaidade de dizer: eu sou o autor. Você está a serviço de uma coletividade.”
Adaptação
Cada pessoa lê um livro de uma maneira. Por isso, uma adaptação nada mais é do que uma leitura de um livro, em outra linguagem – a audiovisual. Por isso, quando precisa transpor sua obra literária para o cinema, Marçal precisa que o diretor lhe diga que filme está vendo ali.
“Eu termino de escrever um livro e, para mim, aquilo é um livro. Ponto final. Eu não quero fazer um filme. É necessário que um diretor me diga: vamos adaptar esse livro? Então eu pergunto: qual é o filme que você vai tirar daqui, que história você viu? Uma vez até me perguntaram quanto eu ganho para ajudar a estragar meus livros no cinema”, conta, bem humorado.
Brincadeiras à parte, Marçal leva a sério a questão do desapego de sua obra: quando entrega seu texto a alguém, ele simplesmente aceita que essa pessoa vai fazer o filme que ela quiser. Caso outro roteirista seja contratado para adaptar, as liberdades que esse profissional tomar vão atender ao conceito do diretor. “Se você não quer ver seu livro adaptado, não ceda os direitos. Mas eu acho que a possibilidade de ver sua história pelo olhar de outro artista é sensacional.”
De acordo com o escritor, o problema das adaptações é que muitas pessoas gostam de um livro e vão ao cinema para ver na tela aquilo que a cabeça delas imaginou, não a visão do diretor. Então, acabam saindo decepcionadas. “O que muita gente não entende é que a literatura é outro universo. Posso escrever num livro: ‘Eu estava em São Paulo e fui tomar café em Paris’. Em uma linha resolvo tudo. Agora vai filmar isso…”
Assim, o maior desafio de um roteirista é contar bem uma história, de modo que todos os envolvidos no filme possam perceber o que se espera de cada um deles. “É uma espécie de livro de receitas, mas não é o bolo”, compara Marçal. É preciso deixar o diretor dar sua contribuição, assim como o ator, o diretor de arte, o fotógrafo, o montador. Cada profissional acrescenta um pouco à história.
O que é uma boa história?
Antes de responder essa derradeira pergunta, que certamente atormenta muitos aspirantes a roteirista, Marçal Aquino dá uma breve explicação sobre as diferenças entre roteiro de cinema e roteiro para televisão no mercado audiovisual brasileiro.
O roteiro de cinema é algo que geralmente tem muito mais tempo para ser desenvolvido, até pela lentidão no processo de captação de recursos no Brasil. “Isso pode levar vários anos, e nesse tempo o roteiro vai amadurecer. A gente vai visitar locações e acaba se adequando ao que viu. Você mesmo está diferente, seu ponto de vista é outro”, afirma Marçal, que acredita que um roteiro deve circular e ser lido por diversas pessoas, porque só enriquece com esses aportes.
Já o roteiro para televisão se enquadra em um processo muito diferente, com um ritmo de trabalho mais intenso, quase uma linha de produção. Diversos roteiristas trabalham juntos, o tempo de concepção é muito mais rápido. A TV exige do profissional outro tipo de abordagem. Ainda assim, em qualquer mídia, o importante é tentar desenvolver a história de maneira que o espectador possa ser envolvido e, de certa forma, manipulado.
“Uma boa história é aquela que me prende logo na primeira frase. Ela consegue falar comigo, mesmo não tendo sido escrita para mim”, define o roteirista. “É uma história que, quando eu termino de ler (ou ver) estou diferente de quando comecei”, completa. Em suma, para ele, um bom filme é aquele que você não percebe que a pipoca acabou.
Naturalmente, esse critério é subjetivo. “Existe uma coisa pessoal no ato de assistir um filme, ler um livro, que está ligado à sensibilidade. Você tem que se render àquilo que vê”, explica. Marçal brinca que suas experiências no cinema em geral são muita chatas, porque são poucas as tramas que o convencem. “Eu sou aquele cara que não se entrega, não se deixa manipular, que fica vendo de fora. Não consigo desligar. Minha filha odeia ir ao cinema comigo.”
Agora, quando é surpreendido por uma boa trama, Marçal afirma que o prazer de “ser enganado” é muito grande. “Eu gosto de filmes em você vê que houve um trabalho de roteiro. Se na direção de arte, a melhor arte é aquela que você não percebe, no caso do roteiro o melhor é aquele que você sabe que o roteirista manipulou você”, diz o escritor, acrescentando que outra coisa essencial é que o filme tenha bons diálogos. “Às vezes a gente escuta umas coisas que não se ouve em lugar nenhum, só na cabeça daquele roteirista.”
Mas, afinal de contas, o que é uma boa história, na opinião de Marçal Aquino? Oras, quem está escrevendo quer que o leitor ou espectador pense determinadas coisas na ordem em que ele vai revelar. Ele não quer que ninguém saiba nada antes. “Se eu começo a contar uma história, mas você já prevê o que vai acontecer, fracassei como roteirista.” Então, para Marçal, um bom roteiro é aquele que compartilha os fatos na medida certa para surpreender. “Nós vivemos para sermos enganados pelos escritores”, conclui esse grande contador de histórias.