Cristiano Burlan entrevista Jean-Claude Bernardet
O Copan, símbolo da arquitetura moderna brasileira, é um dos mais importantes e emblemáticos edifícios da cidade de São Paulo. Projetado por Oscar Niemeyer na década de 1950, é conhecido pelas suas linhas sinuosas e por ser o maior edifício residencial da América Latina, com cerca de dois mil residentes habitando seus 35 andares.
O romancista, crítico de cinema, roteirista, cineasta e ator Jean-Claude Bernardet começou a carreira de crítico escrevendo resenhas de filmes para o Suplemento Literário do jornal O Estado de S. Paulo. Foi um dos maiores interlocutores do grupo de cineastas do Cinema Novo e um dos criadores do primeiro curso de cinema do Brasil, em Brasília. Além de sua importância como escritor e teórico, participou de importantes filmes, como roteirista, assistente de direção e ator.
Em 2011, quando morava no edifício Copan, o diretor e professor da Academia Internacional de Cinema (AIC), Cristiano Burlan, conheceu Jean-Claude (JC). Esse encontro deixou marcas profundas no diretor e resultou na realização de quatro filmes em que JC participa como ator: “Amador” (2013), “Hamlet” (2014), “No vazio da noite” (2015) e “Fome” (2015), que estreará em competição no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro e JC é o protagonista.
Na sexta-feira, 14 de agosto, Burlan e Jean-Claude foram juntos assistir ao filme “Ladrões de Cinema” (1977), do diretor Fernando Coni Campos, em que JC atuou. Depois da sessão, Burlan o convidou para uma conversa, em que também participaram os atores e professores Ana Carolina Marinho e Henrique Zanoni.
O resultado? Uma espécie de “Colóquio Ruidoso”, um bate-papo filosófico, repleto de conteúdo sobre bons filmes, direção, atuação e interpretação para cinema.
A Conversa
Cristiano Burlan: Então vamos lá seu Jean-Claude.
Jean-Claude: O que eu devo falar, Cristiano?
CB: Por que o senhor decidiu abandonar a carreira de crítico e se tornar ator?
JC: Com a diminuição das revistas, com a passagem dos intelectuais para a universidade, a crítica cinematográfica de jornal se enfraquecesse e deixamos de ser críticos e nos tornamos ensaístas. Agora publicamos livros e não mais críticas. E, aliás, nos consideramos mais como analistas de filmes do que propriamente como críticos. A crítica a qual as pessoas se referem é mais uma crítica escrita, quer dizer, o crítico enquanto escritor, mas além de escrever eu sou um crítico militante, entende? Um crítico que pode colaborar com o cineasta para que o filme dele apareça no cinema, como eu fiz com o “Arthur Omar”. Isso é um crítico combatente. Então, a forma da crítica não é necessariamente ou exclusivamente por escrito. Isso é uma modernidade, entende? Por exemplo, uma série de coisas que eu disse hoje sobre “Ladrões de Cinema”, eu não escrevi, mas eu falei em Belo Horizonte e em vários lugares sobre as minhas extremas dúvidas ideológicas em relação ao filme. Parei de escrever, no entanto, apareceu “Sem Pena” do Eugênio Pupo, achei o filme importante, gostei, me empolguei e, então, escrevi, apareceu “Ato, Atalho e Vento” do Marcelo Masagão e tudo o que eu escrevi sobre o filme é porque eu estou convencido de que ele realmente vale a pena, entende?
CB: Mas por que decidiu se tornar ator?
JC: Desde os anos 60,eu tinha essa ideia de que seria bom para a formação do crítico ter experiências do outro lado da tela. Então, fiz algumas participações em alguns filmes, a exemplo do “Anuska” de Francisco Ramalho, “Profeta da Fome” de Maurice Capovilla, entre outros. Além disso, frequentei salas de montagem, visitei músicos que faziam trilhas e também fiz a montagem estrutural do “Gamal” de João Batista de Andrade, entre outros. Eu acreditava que essa atividade mais ampla me permitia ter uma apreciação melhor, uma compreensão melhor do filme, do que apenas ver o filme na tela. Em 2009 com o Kiko Goifman em “Filmefobia” eu passei a me dedicar seriamente a atuar e tomei gosto. Então eu descobri uma coisa que estava em mim há muito tempo, uma espécie de narcisismo e gosto particularmente do aspecto performático que é o que eu faço com você, com o Taciano Valério e com o Kiko, mas os pequenos trabalhos que eu fiz compondo personagens mais tradicionais como “A navalha do avó” de Pedro Jorge, eu devo dizer que eu também gostei de fazer, você entende? Porque diversifica a experiência e esse método mais tradicional lhe deixa seguro, porque você teve ensaio de mesa, você decora diálogos, você tem ensaios propriamente ditos, você tem ensaio de câmera, ou seja, quando você chega para a tomada, você sabe o que tem que fazer. O improviso é uma angústia constante. Porque você pensa que o diretor vai dizer corta e ele não diz.
CB: Mas você tem reagido bem ao improviso.
JC: Eu gosto disso. Por exemplo, as provocações que você me fez em “Hamlet”, que de repente você me diz no primeiro dia de filmagem, no palco do Teatro Aliança Francesa, para eu dar todo o texto do fantasma. Eu e o Henrique Zanoni pensamos que iríamos ensaiar. Às vezes, inclusive, eu achei que no “Fome” eu reagi mal. Porque naquela noite na Praça da República praticamente tiveram oito performances com atores diferentes. Então tem uma hora que você cansa, né? Por exemplo, a cena de Jesus Alegria dos Homens, para mim foi um total fracasso.
CB: Tenho que concordar com você, não entrou no corte do filme (risos).
JC: Imaginei. Então, tem um momento que você se esgota, né? Eu pelo menos.
CB: Por que você aceitou fazer o “Fome”?
JC: Porque você me convidou. Se não tivesse convidado, eu não teria aceito, não é? (Risos) A resposta que você espera é um elogio a você?
CB: Não, não, nem um pouco. Não trabalho bem com elogios. Até porque você nunca me elogiou, na verdade, uma vez só, mas faz muitos anos.
JC: Tantos anos que nos conhecemos?
CB: Acho que uns 4 ou 5, desde 2011. Mas como fizemos quatro longas juntos, parece que foi muito mais.
JC: Eu te considero realmente como um amigo. Mas independentemente disso eu me sinto muito associado a esse tipo de cinema. Então eu quero colaborar. Quero estar associado a este tipo de cinema, que é um cinema de risco, um cinema que você não sabe muito bem no que vai dar e eu tenho um certo prazer angustiante, porém prazer em ir até os limites, de tentar ultrapassar os limites. Eu acho que no “Fome” foi bastante isso. A exemplo da queda no poço e de outras cenas, eu fui sempre em frente.
CB: Não hesitou em nenhum momento. Mesmo sem ter visto o filme, o que ficou da experiência das filmagens?
JC: Uma experiência muito densa, muito positiva, de intensidade, o prazer também de não ter que interpretar um personagem, porque isso não é um personagem, é uma multiplicidade de coisas mas não propriamente um personagem. Isso me dá prazer.
CB: E quais são as suas expectativas para o Festival de Brasília, você ficou surpreso com a seleção do filme, não?
JC: Ah, fiquei surpreso sim, porque depois da levada do ano passado eu achava que esses filmes não iriam entrar. Eu fiquei surpreso. Mas quando eu dizia que não iríamos ser selecionados para o Festival, você me dizia que eu estava excepcional no filme, me elogiava e tudo. Ai quando Brasília aceitou, eu pensei, vai ver que é verdade… (risos)
CB: E quais são as suas expectativas para o Festival?
JC: Você quer que eu diga de receber o melhor prêmio? O prêmio de melhor ator? (Risos) O que eu realmente gostaria é que o filme tenha uma boa receptividade do público. Isso eu gostaria.
CB: E o que você teria para dizer para os atores que estão começando agora?
JC: Improvisem o seu currículo (risos).
CB: O ator Henrique Zanoni (que atuou com o Jean-Claude nos meus últimos quatro filmes) vai fazer uma pergunta pra você agora – HZ: O que o senhor acha da deambulação? Você falou muito sobre isso no filme “Sinfonia de um homem só”, de Cristiano Burlan.
JC: Bom, o cinema de deambulação é uma tradição que se desenvolve nos anos 20. No Brasil, o melhor exemplo é “Limite” de Mário Peixoto, em que personagens andam naqueles caminhos e o andar é uma ação. Depois aparece “Alemanha, Ano Zero” de Rossellini em que a cena final é aquele menino deambulando pelas ruínas. E ai vem a Nouvelle Vague em que todo mundo anda e andar na rua é uma ação. E quando eu vi, acredito que pela primeira vez, um espetáculo da Pina Bausch, talvez Cafe Muller, quando as cadeiras estão no fundo, pensei: andar é realmente uma ação, entende? Então um cinema de deambulação é um cinema de ação.
CB: A atriz Ana Carolina Marinho (que contracenou com o Jean-Claude em “Hamlet” e “Fome”) também vai fazer uma pergunta. – AC: O que há de Jean-Claude naquela persona que você construiu para o filme “Fome”?
JC: Houve um escândalo familiar no CineSesc quando o Taciano Valério apresentou o filme “Pingo d`água”, a minha família ficou muito irritada, aos gritos e um dos gritos era “isso é você, isso é você mesmo”. Ai eu dizia que “ta, tudo bem, mas eu não costumo entrar dentro de uma mala” (risos). Então, para mim isso tem muito a ver com autoficção, em que são variações em torno de si mesmo e da sua potencialidade. Então, por exemplo, eu não costumo entrar em poços, em obras inacabadas, né? Mas eu acho que isso é uma das minhas possibilidades. Eu não interpreto um personagem que desce dentro de um poço, eu desço dentro de um poço como uma das minhas possibilidades.
CB: Muito bonito. Vai entrar para os anais da história (risos). Ontem eu respondi uma pergunta para um jornalista sobre o “Fome”. Ele me perguntou como era lhe dirigir e eu disse que já era o quarto filme que fazia contigo e que raramente eu entendo o que o senhor fala, por causa do sotaque francês…
JC: É verdade isso?
CB: Mais ou menos (risos). É uma piada, para ficar mais interessante a história. Mas no “Hamlet”, você me falou que não era um ator, mas sim um performer, um bailarino. Demorei um pouco para compreender e ter a dimensão das suas palavras. Quando me dei conta, percebi que me interesso por filmar bailarinos em cena e não atores. Não filmo sequências, filmo coreografias. Cada vez menos me interesso pelo verbo e por contar uma história, acho que a literatura já faz isso muito bem. Por isso me interessa um ator em estado de caos. Hoje me interessa mais filmar o que está entre as pessoas, o que elas escondem e o que está dentro delas, do que uma necessidade em construir uma narrativa aristotélica. Essa angústia que você me diz que sente ao improvisar é matéria-prima para mim.
JC: Gostei.
CB: O senhor tem mais alguma coisa a dizer?
JC: Não, mas gostei.
CB: Muito obrigado, seu Jean-Claude e até o nosso próximo filme.
JC: Muito obrigado, seu Cristiano. Até.
*Próxima turma do Curso de Interpretação para Cinema, coordenado por Cristiano Burlan, começa no próximo dia 3, na AIC São Paulo.
**Imagens divulgação